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domingo, 8 de agosto de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 70

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 70

Rangel Alves da Costa*


Lucas parecia não acreditar no que acabava de ouvir. O pai de Ester, aquele mesmo político que um dia espancou a filha simplesmente porque namorava com um pobretão, sem família de nome e posses, e que por isso mesmo forçou que a mocinha fosse estudar em outro lugar para ficar cada vez mais longe do namorado de infância. Aquele pobretão e rejeitado era ele próprio, Lucas, e jamais poderia esquecer nem daqueles fatos nem das ações daquele senhor.
Muita coisa estava por trás dessa oferta de vigilante, dessa bondade toda. Ninguém fica bonzinho de repente e esquece tudo o que fez de uma hora para outra. Dizem que quem faz o mal depois se comporta como esquecido, mas ele tinha certeza que o outro lembrava de tudo direitinho, até mesmo porque até hoje olhava para ele desconfiado. Lucas não esquecia de nada. Pelo contrário, pois naqueles dias em que Ester esteve por ali tudo voltou a ter uma vivacidade como nunca.
Nessa vivacidade reencontrada juntavam-se as lembranças das coisas boas e também das ruins. Não poderia jamais esquecer os instantes bons vividos ao lado dela, naquele amor adolescente que certamente frutificaria se não fosse impedido pelo açoite, pela palavra e pela humilhação. Estes eram os aspectos ruins que também se assomavam à mente. Verdade é que ninguém pode esquecer facilmente o que foi marcante na vida.
Tinha a certeza que mais uma vez a maldita da política estava por trás dessa bondade toda advinda na pessoa do pai de Ester. O velho não era flor que se cheirasse, como diziam por lá. Mesmo tendo todas as características dos antigos coronéis e senhores de escravos, quando o assunto dizia respeito a arrumar eleitores e garantir votos, a velha cobra se transformava num dócil animal. Tudo falsidade, tudo mentira, pois mais cedo ou mais tarde aquele que o ajudava a se eleger para isso ou aquilo recebia um bote venenoso de volta. E agora, quando todos diziam que se preparava para disputar eleição de deputado, certamente que já começava a agir.
Sabia das dificuldades do rapaz que fora enviado para trabalhar ali, segundo o próprio já havia relatado, mas não poderia aceitá-lo de maneira nenhuma, principalmente sabendo de quem estava por trás daquela benevolência toda. Ainda não, mas tinha a certeza que em poucos dias o velho chegaria por ali, diria que havia colocado vigilante pagando do seu bolso e que poderia ajudar muito mais, pois tinha as melhores intenções e desejava que ele esquecesse de todos os contratempos ocorridos no passado. E o passo seguinte seria se infiltrar cada vez mais para tirar dividendos políticos dos trabalhos que estavam sendo desenvolvidos ali.
As intenções do pai de Ester seriam bastante parecidas com as do prefeito, só que aquele estava começando a agir, enquanto que este já havia ultrapassado a fase das boas intenções e agora, como Lucas não havia aceitado pactuar, estava testando a fragilidade dele através da prática do mal. Assim, primeiro procuravam atrair amigavelmente, mas quando encontravam resistências mudavam os seus planos. O bem, que nunca foi pensado num bem verdadeiro, numa coisa boa, se transformaria de uma hora para outra em perseguições, atentados e tudo mais.
Até que o aparecimento daquele rapaz ali fez surgir a constatação do quanto seria bom se um vigilante fosse contratado para dar mais segurança. Mas não tinha como. O dinheiro estava cada vez mais escasso e não podia usar um centavo da quantia depositada pelo esposo de sua irmã para outra coisa, senão o acertado, que foi a construção do novo barracão. Prestaria contas sobre cada centavo gasto, pois assim gostava de agir e se sentia bem agindo dentro da moralidade.
Nesse mesmo dia Ester apareceu no terreno. Chegou dirigindo o veículo do pai e afirmou que precisava conversar com ele. Lucas pensou que a moça fosse tratar de algum assunto referente ao barracão e às obras sociais ali desenvolvidas, mas não, pois ela foi direto ao ponto e começou a falar sobre os dois, sobre o passado e sobre o erro do pai.
E disse ainda que o seu pai estava muito arrependido com o que tinha feito e que até tecia muitos elogios sobre ele, o seu esforço e o belo trabalho social que realizava. E por isso mesmo em nada se opunha e até se sentiria feliz se os dois reatassem o namoro. Em seguida, falando sobre ela própria, disse que na verdade jamais havia esquecido dele completamente, pois uma pessoa que amou tanto sempre ficaria no seu coração como uma coisa boa. E nos últimos dias vinha sentindo que a afeição amorosa por ele tinha aumentado ainda mais, e que naquele instante não tinha mais vergonha de dizer que estava apaixonada novamente.
E de modo calmo, bastante tranquilo, como se já estivesse esperando ouvir aquilo tudo, Lucas perguntou:
- E em troca de quantos votos isso tudo, esse amor todo?
E Ester baixou a cabeça envergonhada. Não sabia mais o que dizer ao sentir que ele havia descoberto que até ela estava tentando enganá-lo em troca de apoio político ao seu pai.
E Lucas perguntou novamente:
- Quantos votos por um beijo? Uma eleição vale um casamento?


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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