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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 17 de agosto de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 78

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 78

Rangel Alves da Costa*


Encontrar onça e papagaio falante dentro do barracão já tinha sido uma viagem longe demais da imaginação, mas depois ouvir que nada daquilo existia e ainda ficar sabendo do surgimento de uma vela acesa na mesinha já era ultrapassar todos os limites. E a mente fragilizada testa o paciente, mas não suporta ir além do mero estado da fantasia. Quando começa a perturbar além do suportável não há corpo que resista. E foi isto que ocorreu com Lucas.
Quando ia se arriar pelo chão, os meninos o seguraram e conduziram, só sabe Deus como, diretamente para sua casa, o seu quarto, sua cama. Paulinho teve a ideia e Antonio partiu imediatamente para a cidade. Iria encontrar Ester a todo custo e avisá-la sobre o ocorrido, de modo que ela, amiga de todos e quase médica formada, pudesse ir até ali verificar o estado de saúde de Lucas. Ela teria que ajudar, que fazer alguma coisa.
Só que os meninos não sabiam da nova realidade envolvendo Ester e Lucas, a partir do instante que este descobriu que o único objetivo da sua aproximação e da amizade adquirida com todos não passava de um jogo de interesses políticos para ajudar na candidatura de seu pai. Naquele instante, todas as relações estavam cortadas e, pode-se até afirmar, ela havia ameaçado por tudo destruí-lo de vez. Colocá-la agora diante dele seria o mesmo que entregar uma arma ao sedento de sangue.
Ora, o anjo do Senhor, este mesmo ser de luz incumbido de acompanhar os passos de Lucas nestes períodos de iniciação aos mistérios de ser um dos estandartes e condutor da cruz do Senhor sobre a terra, sabia que a moça seria chamada a estar ali. Ele sabia que isso era necessário para que mais uma vez ficasse provado o quanto as pessoas são pequenas, mesquinhas e falsas nesta vida vã. Para comprovar somente que uma afeição de ontem de repente pode se transformar em inimizade, ódio e até inimizade destruidora. Porque o amor tão verbalmente anunciado não significa nada quando os desejos particulares se sobrepõem aos anseios dos dois.
Mas Ester estava ali, para alegria do anjo superior e dos outros anjos. Até onde se avista a fronteira entre o amor e ódio? Diante de um enfermo, pessoa que há pouco tempo era tida acima de um amigo, como se comportaria essa futura médica, confrontando princípios humanitários e éticos com ambições pessoais e ódios até incompreensíveis? Quem estava ali ao redor do leito do enfermo era a profissional ou a mulher rancorosa e vingativa? Ela daria o remédio ou o veneno? O que ela pretenderia naquele momento, ajudar a curar ou matar?
O anjo do Senhor já conhecia todas essas respostas, e por isso mesmo estava feliz. E estava feliz porque aquele aprendizado talvez servisse como conteúdo para enviar um relatório para o seu superior: "Teus filhos deixaram de ser irmãos aqui na terra. Quando enviá-los à vida, melhor seria que já viessem com duas bandeiras nas mãos, uma da paz e outra da guerra. Assim, não haveria tantas falsidades e os inimigos seriam logos avistados pela bandeira que estivessem erguendo na mão esquerda".
Assim que entrou no quarto e encontrou Lucas suando frio e se contorcendo, desacordado e com a mente em viagens de vida e de morte, a primeira coisa que Ester fez foi se derramar em prantos. Chorava como alguém da família que estivesse assustada pelo quadro encontrado. Depois se aproximou, e antes que fizesse qualquer exame, beijou seu roso e segurou suas mãos. Coisa linda de se ver se fossem gestos verdadeiros e de coração, dizia o anjo.
Mandou que os meninos saíssem do quarto por um instante e ficou sozinha com o doente. De repente, não havia mais nenhum sinal de lágrima escorrendo pela sua face e nem aquela feição de temor e aflição há pouco demonstrado. Do nada surgiu um leve sorriso, os olhos começaram a se acender mais fortemente, ficaram flamejantes e cheios de ódio. Com mãos trêmulas, abriu uma pequena bolsa e se pôs a procurar qualquer coisa.
No íntimo de Ester os pensamentos não eram outros: "Besta, quis ser tão forte e decidido e agora aí sem valer um tostão, como um papel em minhas mãos que posso rasgar quando quiser", "Agora ele vai saber com quantos paus se faz uma canoa. Seria tudo fácil e simples, bastando aceitar ajudar a eleger o meu pai, mas não quis, agora vai afundar feito uma canoa de papelão", "Ele vai morrer porque existem pessoas que não merecem nem precisam viver. Nasceram como pedra no caminho, como braços impedindo que os outros passem, como se tivessem o direito de impedir a vitória daqueles que já nasceram vitoriosos"; "Até nunca mais Lucas, basta beber isso aqui e dentro de cinco minutos você já estará são e salvo em outra vida, pois esta pertence aos mais espertos". E abriu a boca dele e derramou todo o líquido de um pequeno frasco.
O anjo sorriu quando viu esta cena. Já sabia muito mais do que deveria comprovar. Mulher cruel e de pouca fé, que mais tarde beberá do verdadeiro veneno que a Lucas não foi permitido beber. Disse o anjo a si mesmo.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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