SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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sábado, 14 de agosto de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 76

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 76

Rangel Alves da Costa*


Madrugada adentro e Lucas sendo tomado pela enfermidade. Já havia juntado forças para preparar um chá e beber. Remédio não tomaria mais não, principalmente porque não gostava de automedicar-se. Esperou para ver se o outro medicamento e o chá faziam efeito, mas suas esperanças diminuíam a cada instante que se passava.
Com um frio de geladeira, tremendo embaixo dos lençóis, mesmo assim suava de molhar a cama. As dores de cabeça haviam passado, mas sentia como se o seu corpo inteiro estivesse dolorido. Mais tarde, com a mente totalmente desnorteada, levada pelos impulsos da doença, pareceu adormecer pesadamente. Mas não, pois um verdadeiro turbilhão começou a povoar seu inconsciente.
E surgiam pássaros de fogo, falcões com lanças no bico, abutres de dentes afiados; e pedras enormes rolavam de uma montanha bem alta em sua direção, despencava da nuvem e ia caindo desesperado, mergulhava num rio e nunca chegava na linha da água, olhava pra cima e as nuvens começavam a jogar bolas de fogo sobre sua cabeça; e corria amedrontado, caía e levantava e a estrada adiante era cada vez mais distante; corria, fugia, pulava, se escondia, entrava por labirintos e sempre voltava para o mesmo lugar.
Com o corpo em espasmos, de tanto se mexer, parecia querer pular da cama. E de repente sentia que abriu os olhos e enxergava turvamente pessoas rodeando sua cama. Ali estavam seu pai e sua mãe, sua irmã e o esposo, o padre, sua ex-namorada, os meninos e muitas outras pessoas. Também estavam o prefeito e o pai de Ester e outros homens carrancudos. Faísca quis ficar ali, mas puxaram ele. E tudo na mente inconsciente, tomada pelas imagens e assombrações trazidas pela doença.
Porém nem tudo era fruto do imaginário produzido pela doença. Seus pais realmente estiveram ali; sua mãe passava a mão sobre o rosto do filho como se enxugando o suor. Partiram sem desejar porque os anjos não permitiram que gestos de afeições familiares continuassem interferindo nos desígnios maiores de Deus. Se Lucas estava com aquela enfermidade e naquela intensidade não era por acaso, pois até no sofrimento estava o consentimento divino. E quem mais sabia dessa realidade era o anjo do Senhor que não havia abandonado o rapaz um só instante.
Haveria quem dissesse ou acreditasse que não, mas este anjo estava na chuva, estava na vontade de Lucas tomar banho, estava molhado junto ao corpo dele, estava abrindo os seus braços e despejando os pingos sobre o seu rosto feliz, estava na doença que se abateu depois e também estaria na cura. Mas por que não evitar tudo isso num só sopro de convencimento? Ora, os mistérios divinos agem sem o necessário entendimento humano e para produzir resultados que somente aquele que tem verdadeira fé poderá entender depois.
O anjo apenas observava Lucas no sofrimento e ordenava que os outros anjos dessem a paz suficiente para que ele adormecesse profundamente e só acordasse quando a manhã já estivesse se aproximando do meio-dia. Não permitiria que o mal se aproveitasse daqueles instantes e agisse mesmo debaixo de chuva na casa, no barracão, na praça da cruz, nos arredores da pequena propriedade.
Será que esse padecimento todo não teria sido uma forma de fazer com que Lucas mais tarde procurasse entender o quanto é ruim as pessoas viverem sozinhas, principalmente quando surgem momentos difíceis para superar? Ou será que por trás disso tudo estavam lições tentando ensinar que o homem deve sozinho encontrar os meios para vencer as dificuldades; que ninguém pode se achar tão forte que de um instante para o outro não se sinta um ser abandonado; que ninguém é nada diante do desconhecido? Ou ainda será que diante disso tudo ele se olhasse no espelho e dissesse que a doença expulsou o medo e curou as chagas abertas na alma ao longo dos anos?
Não encontraria a resposta agora. Talvez jamais encontrasse uma resposta pronta e acabada, mas apenas situações que fossem confirmando aquilo que pressupunha: a cada passo que dou vou vencendo barreiras e é preciso caminhar ainda mais e com mais força e fé para vencer totalmente o inimigo.
Verdade é que ao levantar perto do meio-dia, sentindo a chuva caindo com força lá fora, não se achava com nenhum resfriado nem com qualquer outro sintoma de gripe. Olhou-se no espelho e seu rosto estava bom, corado, saudável. E voltou para se olhar novamente para confirmar as primeiras impressões e pelo vidro espelhado percebeu uma forte luz brilhando atrás de si. Não teve medo. Já sabia o que era. Apenas deu um sorriso e foi abrir a porta que dava para a varanda de entrada e olhar como estava o mundo lá fora.
Lá fora havia um mundo. E deixaria que recuperasse mais um pouco as forças e as chuvas diminuíssem para enfrentá-lo novamente.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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