*Rangel Alves da Costa
Em muitas
situações, a pessoa transmuda para um universo que nada tem a ver com o seu
jeito próprio de ser. Por circunstâncias ou conveniências, de repente se torna
em outra.
Não raro
que surjam os comentários de como esta ou aquela pessoa mudou, e para pior ou
pra melhor, segundo o julgamento do outro, e este sempre a partir de opinião
pessoal.
Aqui diz
respeito à mudança de comportamentos, atitudes, jeitos de ser e conviver, e não
das transformações próprias trazidas na esteira do tempo.
Ocorre
muito ante o poder, a função exercida e a graduação. Ora, raramente o ocupante
de pedestal irá se comportar da mesma forma que fazia no seu passado.
O
designativo “doutor”, muitas vezes, parece ser coisa do outro mundo, impondo
uma limitação perante os pobres mortais. O anel e a caneta servem para mostrar
o lugar de cada um.
A farda ou
o fardão, a toga ou a gravata, a sala ou o gabinete, tudo isso serve como
delimitação da esfera de cada um, e nesta hierarquia o afastamento daquele que
nada é aos seus olhos.
Passa e
nem olha. O cumprimento somente em mesmo nível. Quando necessária uma palavra
com o dito “inferior”, esta sempre de modo arrogante, truculento, deseducado.
“Sabe com quem está falando?”. Eis a síntese
da transformação humana, quando homens deixam de ser homens e se tornam apenas
em mero exercício de menosprezo perante os demais.
O poder
abusa, é arrogante, é virulento, é demasiadamente desumanizado. O poder cospe
no outro, chuta o próximo, fere qualquer, e pelo simples fato de ser poder,
ainda que apodrecido na própria pessoa.
A
autoridade é autoritária, tirânica, ditatorial. Quem se arvora de autoridade,
logo se imagina comandando vidas, ditando comportamentos, fazendo o que bem
entender perante aqueles que supõe como
súditos.
As provas
estão aí. As salas e antessalas estão cheias de pessoas que merecem ser
respeitadas por aqueles que, desejem ou não, estão à serviço da população. O
povo deveria lembrar sempre disso.
Até mesmo
no serviço público há reis e rainhas, soberanos e princesas, ditadores e
tiranos, e todos até de uma vidraça tratando o contribuinte como cachorro, como
asqueroso, como mero importunador.
Isso tudo
me faz lembrar os escritos de um amigo meu, letras rabiscadas em seu caderninho,
dizendo, em síntese, que o melhor da vida é o viver perante aquilo que se
deseja e tendo, acima de tudo, humildade perante pessoas e coisas. Eis:
“Eu bem
que poderia estar pisando no asfalto, passeando pelos shoppings ou pelos
calçadões, mas eu estou aqui.
Eu bem que
poderia ser adorador do terno e da gravata, devoto do anel no dedo, abnegado ao
termo “doutor”, mas eu estou aqui do jeito que você é e como você está.
Eu bem que
poderia chegar, fazer o que eu tenho a fazer, e depois simplesmente partir, mas
eu vou onde você está.
Eu bem que
poderia simplesmente passar por você, fazer que nem lhe reconheço mais e seguir
adiante, mas eu lhe conheço sim, falo sim, abraço sim.
Eu bem que
poderia caminhar pelas rodas de um carro, avistar o mundo atrás de um vidro
fumê, sequer buzinar perante sua presença, mas eu vou caminhando e sorridente
até onde você estiver.
Eu bem que
poderia não me esforçar para lembrar o seu nome, mas sinto necessidade de lhe
chamar como é conhecido e relembrar sobre tudo o que sei.
Eu bem que
poderia não ir além do centro da cidade, não adentrar em ruelas, não visitar o
chão batido, não avistar a pobreza, mas de nada disso eu sou distante.
Eu bem que
poderia dizer além do que sou, subir estrelas em pedestais, mas bem sei que à
escada sobe-se através do chão.
Eu bem que
poderia ser egoísta, boçal, demagogo, e me adornar de ilusões para simplesmente
querer ser mais que o mundo, mas todo dourado enfeia minha cor de couro e minha
tez de areia.
Eu bem que
poderia não bater em sua porta, não levar sorriso no olhar nem palavra boa
comigo, mas eu sei o quanto deseja e precisa do olhar e da palavra.
Eu bem que
poderia não aceitar seu café quentinho, não beber água em caneca, não querer
sentar em sua mesa, mas agindo assim eu seria muito diferente do que realmente
sou.
Eu bem que
poderia não ser como sou e forjar ser outro, mas outro eu não sei ser. Eu bem
que poderia negar minhas origens, omitir minhas raízes, ocultar de onde vem e
por onde escorre o meu sangue, mas meu orgulho é ser sertanejo.
Eu bem que
poderia aprender a dizer sempre não, mas não sei, mas não sei fazer assim, e
tudo faço para dizer sempre sim.
Eu bem que
poderia não estender minha mão à mão calejada de luta, fingir que não conheço o
de roupa rasgada ou de pés descalço, fazer de conta que não é do meu mundo
aquele mais desvalido, mas eu já não seria eu, e em mim eu já não estaria.
Eu bem que
poderia ser diferente. Mas eu sou apenas eu. E um igual a você”.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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