SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 30 de agosto de 2019

ZEQUIAS CONTA TUDO



*Rangel Alves da Costa


Zequias Geremias dos Santos, ou somente Zequias, conforme gosta de ser chamado. E não há quem não conheça esse nome no seu sertão e arredores onde ainda vive. Já perto dos cem anos, mas ainda de viva memória e lucidez, um verdadeiro testemunho dos distantes e idos.
Segundo confessou-me, sua vida já foi de serventia de quase tudo. Já foi vaqueiro, mateiro, caçador, coiteiro e muito mais. E quase até jagunço. Hoje vive numa casinha simples de cipó e barro, além de uma estrada de chão, nos escondidos além de uma porteira. Mas não vive esquecido não, eis que diz sempre rodeado com os vultos de seu passado.
Ultrapassei a porteira sem medo de não ser recebido. Ele já me aguardava. Caminhei até sua portada e chamei pelo nome. Então Zequias apareceu já apontando um tamborete. Disse-lhe em seguida que achava melhor a gente sentar mais adiante, debaixo de um sombreado de umbuzeiro. E para lá seguimos.
Caminhando devagar, no passo lento dos anos, levava à mão fumo, palha de milha e um canivete miúdo. Eu já sabia a serventia. Depois que coloquei seu tamborete, após a assentada a primeira coisa que fez foi preparar seu cigarro de palha.
Ajeitou o fumo na palha, juntou tudo com o canivete, passou a ponta da língua na beirada da palha e depois fechou o cigarro. Puxou uma caixa de fósforos do bolso e acendeu. A fumaça subiu. No instante seguinte já estava me perguntando sobre o que eu queria saber. Respondi que sobre tudo, e tudo que sua memória pudesse revelar. Então ele começou:
“Muito eu tenho visto de coisa do outro mundo. Tenho medo não, não senhor. Já faz tempo, mas certa feita eu vi quando, vindo daquelas bandas do meio do mato, uma pessoa sem cabeça. Sim, um cabra sem cabeça e como se tivesse saído de uma cova. Veio na minha direção e perguntou se eu sabia onde tava sua cabeça. Sei, eu sei onde tá sua cabeça, foi o que respondi. E disse: tá lá dentro do mesmo lugar de onde você veio. Pode ir lá procurar que você acha. Então o cabra voltou e nunca mais apareceu. Poucos acreditam quando conto essa história, mas foi tudo verdade. Também verdade que depois disso nunca mais desapartei de um rosário com crucifixo no pescoço...
Num fui coiteiro porque quis não. Naquele tempo do cangaço, não tinha escolha não, ou acoitava cangaceiro ou era pior. Mas uma coisa é certa: o cangaceiro tratava o sertanejo com muito mais respeito que o soldado da volante. Esse era um filho da gota serena de ruim. Já chegava querendo apunhalar o cabra se não dissesse que sabia onde o bando tava acoitado. Eu tinha tanta raiva de volante que não me neguei em ajudar cangaceiro, mas nunca procurei Lampião pra oferecer meu serviço. Quando o bando aparecia aqui e me pedia pra arranjar isso ou aquilo, pra ir comprar uma coisa ou outra, e ir levar em tal lugar, então eu fazia o serviço. E muita vez recebi até dinheiro pelo que eu fazia...
No meu tempo de vaqueiro aconteceu uma história pra lá de espantosa. Todo mundo dizia que havia um boi chamado Assombração que ninguém conseguia pegar, pois mesmo avistado e já pertinho, de repente o bicho se encantava e sumia. Pois bem. Certo dia eu disse que ia pegar o tal de Assombração. Ajeitei meu cavalo bom e segui pela mataria. O bicho vivia numa mataria fechada que só. Mas eu tive uma ideia e não contei a ninguém. Quando fui atrás do bicho encantador, eu levei também uma novilha nova, bonita. Cheguei perto da mataria fechada, numa distância boa, e amarrei a novilha num pé de pau. Eu sabia que o Assombração vinha atrás da novilha. Fiquei escondido num tufo de mato e me pus a esperar. Somente no outro dia o Assombração apareceu. Apareceu e começou a cercar a novilha, como se quisesse uma coisinha. Então eu subi no cavalo e fui até lá, mas não pra pegar o bicho encantador. Minha intenção era outra. Desamarrei a novilha e voltei com ela, bem devagar. Eu olhava pra trás e avistava o Assombração lá em pé. Quando olhei de novo não vi mais nada. E agora o que planejei. Botei a novilha num curral e deixei a porteira aberta. No outro dia o Assombração riscou por lá. E foi só eu fechar a cancela do curral e pronto. O bicho tava preso e se encantamento nenhum...”.
E Zequias contou muito mais. Mas depois eu conto.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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