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sábado, 30 de junho de 2012

AS CRÔNICAS DO CANGAÇO – 1 (PADRE ARTUR E O BANDO DE LAMPIÃO)


                                      Rangel Alves da Costa*


Tornou-se célebre o episódio do encontro entre Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e o Padre Artur Passos, ou simplesmente Padre Artur, na residência dos amigos comuns Teotônio Alves China, o China do Poço, e sua esposa Dona Marieta, na povoação sergipana de Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo.
Segundo as narrativas, o mês era o de agosto, no tríduo dedicado às comemorações em louvor à santa padroeira da povoação, Nossa Senhora da Conceição. No dia 15, data do festejo principal, havia celebração de missa pelo vigário da Paróquia de Porto da Folha, município sertanejo ao qual estava vinculado Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo.
Assim, no dia 15, antes do meio-dia, chegou à localidade o Padre Artur Passos no intuito de celebrar a tão aguardada missa. Cansado, depois de uma longa viagem em lombo de burro, desceu do animal defronte à casa do seu amigo China, local onde ficava todas as vezes que até ali se dirigia. Descansaria um pouco, almoçaria, e depois emendaria nos preparativos da celebração.
Mas a casa da família China, pessoa renomada e das mais influentes na povoação, se enchia de convidados nesse período festivo. E eis que chega um matuto em disparada para avisá-lo que a cangaceirada já dobrava a curva da estrada naquela direção. China sabia que era pra sua casa que o Capitão Lampião se encaminhava juntamente com o seu bando. Já o havia recebido ali outras vezes.
Antes de sair à porta para esperar a comitiva trajada de sol, China gritou por Dona Marieta, que acorreu esbaforida perguntando pra qual lado o mundo estava se acabando. Quando ouviu a novidade da boca do esposo quase desmaia pra trás. Quando conseguiu abrir a boca, disse ao marido que coisa pior não poderia acontecer. E se danou a rezar.
Se benzendo, logo apontou em direção a uma porta, em cujo local o Padre Artur descansava antes do almoço, e perguntou como haveria de ser agora com a chegada de Lampião e o velho sacerdote estando por ali. E disse ainda que não esperava nada de bom nesse encontro da valentia bandoleira com a cruz da cristandade.
Verdade é que China também não sabia o que fazer, mas resolveu apenas dizer que não haveria de acontecer nada de ruim. Ademais, se de um lado não podia deixar de acolher o da igreja, por outro lado não podia nem pensar em deixar de receber o da guerra sertaneja. Contudo, o desespero do homem não era maior porque conhecia segredos entre os dois que ninguém mais sabia.
Coisa de não acreditar, mas China já sabia, pois ele mesmo intermediário, de uma velha amizade travada às escondidas entre Lampião e o Padre Artur. Ele mesmo já havia enviado diversas missivas para o padre dizendo o local exato onde o bando estava acoitado e que em tal dia o Capitão lhe esperava para o que sempre faziam nessas visitas mais que escondidas. E tudo mantido em segredo tão bem guardado que somente o coiteiro Mané Félix tinha conhecimento.
E durante essas visitas, sempre saindo no lombo de burro mas chegando à pé e depois de vencer os desafios das pontas de paus, xiquexiques e mandacarus, pedrarias e verdadeiros abismos, o velho sacerdote se transformava totalmente. Ou quase, pois sempre guardava alguns momentos para confessar os cangaceiros, ouvir o que lhes afligia, proporcionar algum conforto espiritual diante daquelas durezas cotidianas.
E como sempre chegava acompanhado do coiteiro carregado de tecidos, bebidas e mantimentos, nem se sentia culpado por passar horas e horas jogando baralho com Lampião, bebericando vinho de jurubeba, taliscando uma perna de preá assado na brasa. Não só o vinho, mas também, cachaça, e da limpinha, da boa mesma. E dizem até que quando o fogo lhe chegava às ventas, logo gritava pedindo um fole e se danava a dedilhar. E era uma festança só no meio da cangaceirada.
Antes de retornar, e quase sempre no outro dia, chegava o momento daquilo que mais apreciava fazer, que era lançar o olhar pidão sobre as mãos do Capitão Lampião e pedir devotadamente que fosse presenteado com aquele anel maior e mais brilhoso. E por mais que o rei dos cangaceiros dissesse que não podia se desfazer assim do presente enviado por este ou aquele coronel do sertão, acabava cedendo aos rogos do amigo vigário.
Com o valioso presente escondido debaixo dos panos, voltava o velho sacerdote em direção à sua paróquia, onde já no dia seguinte começava a esbravejar contra aqueles malditos assassinos, bandoleiros imprestáveis que andavam assolando o sertão de mortes e atrocidades, pecadores que mereciam o tacho fervente ainda em vida. Mas tudo da boca pra fora, pois enquanto falava o anel cangaceiro reluzia na sua mão. E que coisa mais bonita de se ver.
Por ter conhecimento da velada amizade entre os dois é que China procurou se acalmar e dizer à esposa que tudo logo seria resolvido da melhor maneira possível. E ao chegar e tomar conhecimento de que o padre já estava hospedado ali, Lampião foi logo dizendo que tinha grande interesse em encontrá-lo o mais rapidamente possível.
Talvez por momentâneo esquecimento de que China sabia de tudo, ao tomar conhecimento da proposta o padre quis espernear e jurar que jamais colocaria a cruz do Senhor diante de um cangaceiro. Mas em seguida lembrou-se da asneira que dizia ao amigo, porém pediu por todos os santos que não deixasse ninguém perceber que os dois mantinham grande relacionamento de amizade.
Então Padre Artur revestiu-se de falsa ojeriza ao rei dos cangaceiros e saiu do quarto como se quisesse matar uma fera apenas com o olhar. Mas baixou a guarda diante do Capitão e nem pensou duas vezes quando o mesmo lhe chamou num canto e disse que naquele dia todo o bando assistiria a celebração da missa. E a única exigência ouvida foi que deixassem as armas do lado de fora da igreja. Ao menos as de cano longo.
E assim foi feito, depois de uma maravilhosa buchada de bode gordo, coisa de lamber os beiços e repetir o prato. E quanta alegria esfomeada no da batina, e quanta voracidade no da pistola.



Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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