Rangel Alves da Costa*
Há um princípio na norma penal, de base constitucional, afirmando que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. Quer dizer, a norma criada não pode prejudicar o indivíduo além da sanção imposta, ou seja, uma lei nova não pode agravar a situação do agente. É a chamada irretroatividade da lei.
Segundo tal princípio, a lei só pode dispor sobre o futuro. Não há validade alguma na norma que ainda não é conhecida pela sociedade. Portanto, o contexto social não poderia ser penalizado por aquilo que não conhecia, que não configurava como ato ilícito.
Fora da esfera jurídica, no contexto pessoal de cada um, qual validade teria o sentido desse princípio? Preliminarmente, há que se dizer que sob esta ótica, de modo intimista, tal concepção seria a de que o passado só teria validade de relembrança naquilo que fosse útil e proveitoso ao indivíduo.
Daria o mesmo no sentido inverso. Todo o malfeito; tudo que um dia foi feito, mas que hoje traz arrependimento, dor e angústia só de lembrar, estaria de vez expulso da mente de cada um. Não tem cabimento buscar no passado aquilo que de nada sirva para o momento, para o fortalecimento espiritual e para a reafirmação do prazer de ter realizado.
Verdade é que muita gente já faz essa distinção de modo automático. Só gosta de lembrar os grandes feitos, as grandes realizações. As conquistas nunca saem da mente, sendo retomadas na lembrança assim que desejem buscar forças para as ações. Mas se ontem agiu indevidamente, fez aquilo que não devia, errou até dizer chega, então tudo deve permanecer esquecido no baú do esquecimento.
E isto porque o passado condena, deixa a pessoa tão aprisionada que tudo faz para não lembrar. Realmente, não é nada bom para uma pessoa viver recordando os erros cometidos, pequenos ou grandes gestos que ainda hoje ressurgem como martírio. É aquela velha história de que retomar a dor do passado é buscar duplo sofrimento no presente.
Contudo, não se trata aqui daqueles erros involuntários tão próprios em cada um. Tem gente que erroneamente se martiriza por não ter dado um passo diferente, por não ter feito aquilo que lhe pediram para fazer, por não ter seguido um bom conselho. Mas tais situações não devem ser vistas como erros, mas apenas pela inobservância de determinada realidade. E não podem ser vistas negativamente porque qualquer um pode incorrer nestes equívocos.
Do mesmo modo, não podem continuar eternamente martirizando os gestos impensados de determinadas idades da vida. Os erros de criança são compreensíveis, mas muito mais do que aqueles cometidos já na idade mais adulta. Os adolescentes têm direito de errar, mas não de permanecer no erro; as outras pessoas possuem o mesmo direito, mas com a consciência de que muitos dos erros são premeditados e praticados por livre vontade.
Os erros dos adultos se revelam, muitas vezes, como verdadeiros pecados. Torna-se inadmissível que pessoas conscientes, sem qualquer distúrbio mental e que se dizem aptas ao convívio social, de repente se transformem em réus pelo resto da vida. Não porque tenham matado ou torturado, mas porque praticaram pequenos atos que são mais gravosos que os crimes apenados.
A ação premeditada para prejudicar o próximo, a mentira que causa dano irreparável ao outro, a desonra espalhada pelo simples prazer de ver a imagem do semelhante denegrida, o gesto para destruir vidas, relacionamentos e deixar profundas marcas. Tudo isso, ao tempo da ação, até causam um certo prazer masoquista, pecaminoso, odiento. Mas com o passar do tempo vai se transformando em mágoa e arrependimento que acompanhará, torturantemente, o indivíduo pelo resto de sua vida.
Desse modo, se o que foi feito ontem é algo tão abominável e desumano que não mereça ser recordado, o presente e o futuro insistirão em rebuscar tais ações para que a pessoa jamais esqueça que o malfeito se perpetua como o rochedo que não se afasta do seu caminho.
Poeta e cronista
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