Rangel Alves da Costa*
Café com biscoito é bom, com bolo ou pão com manteiga também, mas com palavra é bem melhor. O café puro, com açúcar ou adoçante, com leite ou outra mistura, ou simplesmente amargo, torna-se seiva dos deuses, verdadeiro hidromel se acompanhado do diálogo.
Mas não um diálogo qualquer, uma conversa desinteressante, mas algo cujo verbo e linguajar tenha o mesmo sabor ou seja ainda melhor que o polvilho, a bolacha, o pedaço de bolo de leite. Sorve-se calmamente o café e aprecia vagarosamente cada palavra dita, cada expressão colocada, cada ideia surgida. E que maravilhosa gula é essa do palavreado.
O amigo chega, que lembrança boa essa de aparecer. Nunca mais por ali pra uma visitinha, um dedo de prosa, para considerar a vida nos seus quadrantes. É amizade de longo tempo, desde rapazinhos por aqueles rincões. Mais tarde certamente vai ter aguardente da boa, purinha do engenho, mas antes a xícara de café fresquinho que a comadre acabou de trazer.
E o compadre fala, o compadre ouve, aperta os olhos, sente o coração reclamar, é coisa demais para um só recordar. Não só dos tempos idos, mas também desse percurso de vida molhado de suor e de gotejamento nos olhos. E falam sobre o tempo, as dificuldades com a estiagem, o gado que está morrendo, o povo que está sofrendo. De resto está tudo bem, pois a família com saúde e na luta pela sobrevivência.
Também um breve encontro de esquina pode se tornar num momento de prazer conversado. O amigo logo convida o outro para um cafezinho no bar do portuga, e com a aceitação as ideias já começam a se revirar por dentro para não perder a oportunidade de reviver muita coisa, de não esquecer nada. É como se a palavra adormecida na mente fosse despertada ao encontrar o amigo.
Dessa vez o cafezinho não será no balcão, servido e sorvido rapidamente, mas numa mesa confortável e aonde a garçonete vai logo trazendo um caderninho esperando que sejam muitos os pedidos. Mas por enquanto só um cafezinho preto, o mais forte possível e queimando de doer na língua. Depois do primeiro trago a mente se abre para as relembranças.
E falam sobre os tempos bons na universidade, da vontade de estar ali novamente para se interessar muito mais pelos estudos, dos amigos que se dispersaram, daquele que se deu muito bem e já é muito influente na sociedade, no outro que se tornou político, naquele que casou e se encheu de filhos para viver em constantes dificuldades. E falam também sobre os que já morreram cedo demais. Trocam cartões e acertam para se encontrar sempre ali.
Seja onde for, o cafezinho puxa palavra, diálogo do bom, despertando sentimentos no seu aroma e trazendo distantes recordações no seu sabor. A boa palavra não muda, não se distancia muito do que se pretende falar, mas o café sim, principalmente do que jeito que é apreciado. Puro, negro, bem quentinho, forte, um pouco ralo, coado ou não, com pouco açúcar ou na medida, apenas com adoçante ou com leite.
Esse é o café que chama e aproxima os amigos, que já traz a palavra depois da triscada, que aguça a ideia na ponta da língua. Esse sim, e não aquele inventado, cheio de modismos, que vem carregado de tudo, menos do próprio café. Para quem não tem amigo a encontrar nem palavra a prosear, tanto faz que venha espumante, com bebida, com chantilly, com a boniteza sem sabor. E caro.
Preta velha conversava com o próprio café que pisava no pilão escravo, jogava por cima do tacho para torrar e depois que os grãos pareciam melados de aroma maravilhosamente indescritível, jogavam no panelão por cima do fogão de lenha. E o cheiro forte, oleoso, saboroso demais, subia pelos ares para conversar com as nuvens, açoitar o juízo dos vizinhos e mais distantes, tornar a vida ao redor num verdadeiro aperreio com tudo mundo querendo um gole.
Confesso que só gosto de café bem forte, quentinho e sem açúcar. Não que eu não goste do tempero açucarado, mas porque depois vou ouvir o que uma certa boca tem a me dizer. E as doces palavras, granuladas no beijo, compõem essa nobre receita.
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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