Rangel Alves da Costa*
A chama dos candeeiros dançava ao açoite do vento. De vez em quando apagava e lá ia Crisosta riscar fósforo. Já havia armado a rede mesmo aonde o chuvisco chegava, mas caminhava de um lado a outro, ora colocando uma panela debaixo duma goteira ou encobrindo o mobiliário antigo que ainda restava.
Já devia ter feito isso desde o primeiro momento que chegou, vez que uma coisa que sua mãe jamais esquecia em épocas assim era de colocar toalhas e cobertores por cima de tudo, principalmente onde tivesse espelho. Raio é bicho tão perigoso que mais de vez entra na casa atraído por qualquer objeto reluzente.
Sua mãe ensinava também que não há nada mais chamador de doença do que água nova de chuva depois de caída e espalhada por qualquer lugar. Se era num riachinho, o certo era esperar as primeiras enchentes lavando tudo, passando com toda imundície, para somente depois colocar o pé ali dentro. Se era na bica dos lados ou do fundo da casa o cuido não era diferente.
Telhado ou cobertura que passa muito tempo sem ver água vai criando sujeira, coisas nojentas trazidas no vento, excrementos de ratos, gatos e até cobras. Quando a água de chuva bate então a pestilência desce toda de vez, trazendo todo tipo de doença de pele. Então é preciso esperar chover bem, limpando tudo lá em cima, pra só depois se arriscar num banho.
O mesmo devia ser feito quando se tratava de juntar em baldes ou tonéis as águas derramadas lá de cima. Tinha de esperar toda sujeira sumir, colocar pano limpo na boca de cada recipiente, de modo que servisse como coador. Bastava olhar depois e ver quanta bagaceira ficava retida por cima. E ainda assim essa água só podia ser usada para beber ou cozinhar alimento depois de fervida, e bem fervida.
Quantas lições da boa mãe desaparecidas. Do pai também lembrava muita coisa, muito ensinamento para o dia a dia agrestino, para a vida no campo. Aquela cobra só o acertou porque havia chegado o seu tempo, coisa já escrita desde muito, pois conhecedor como era de tudo que dissesse respeito a mato e a bicho, não era uma peçonhenta que ia lhe fazer o estrago que fez.
Coisa de cima, coisa de riba. Cabe ao que fica chorar, lamentar, mas nunca dizer que foi injustiça divina. Bicho besta o homem que pensar em culpar o acontecido se a vindita do destino já estava marcada.
Batendo com força no telhado, a chuva fazia um barulho danado ali dentro. Se ia mais pertinho da porta ou se ajeitava nas frestas da janela pra tentar enxergar o tempo lá fora, só ouvia mesmo o barulhar da ventania e das águas caindo e se deitando em correntezas. Mesmo só um pouquinho, mas ainda assim conseguia ouvir como se um rio passasse bem ali ao lado. O vozerio apressado da enxurrada corria levando, engolindo tudo.
E começou a imaginar como estariam àquela hora outras pessoas, famílias escondidas nos seus casebres. Era como se estivesse vendo meninos chorando, criançinhas assustadas, adultos espantados, todos sem saber o que fazer diante daquela fúria da natureza. Certamente muitas daquelas taperas já haviam se transformado em barro levado nas enxurradas.
Não duvidava do sofrimento daquele povo, dos seus irmãos de chão e de abandono. A maioria daquelas pessoas só possuía na vida o que as quatro paredes guardavam. O simples fato de panelas, potes, colchões velhos, esteiras, camas, esteiras, roupas, molambos, todas as riquezas existentes, serem perdidos, levados, já era perda demais pra quem não podia se refazer tão cedo. E se a casa caísse ou alguma parede ou telhado desabasse então o problema seria ainda maior, pois teriam de se arranchar no meio do tempo tempestuoso.
Também não era difícil que pessoas já tivessem morrido. Igual a bicho que enfraquece e cai quando sente por cima a força da trovoada, não era difícil que o ossudo agrestino tenha sido vitimado pelo espanto da tempestade, pela picada das cobras que seguem nas águas ou até mesmo por alguma telha caída ou parede derrubada. Era a sorte trazendo a morte, coisa de cismar e tão comum por ali.
Mas fazer o que, meu Deus do céu? Se pudesse saía voando daqui e passava por toda casa que estivesse ao redor, oferecendo ajuda, também o amparo que necessitassem, doando aquilo que pudesse. Mas nem bicho do mato sai muito distante da toca. Os estragos infelizmente só serão conhecidos depois que a chuva parar e as águas baixarem, deixando livre as veredas e estradas. Dizia a si mesma a mocinha.
Mas tão cedo a chuva não iria embora. Bastava sentir a força ainda maior com que ela caía e se mantinha. E até pra Crisosta isso causaria um sério problema, colocando até sua vida em perigo.
Continua...
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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