Rangel Alves da Costa*
Não é o mesmo cálice onde Jesus Cristo bebeu vinho na última ceia e que mais tarde José de Arimateia recolheria parte do sangue vertido pelo filho de Deus ao ser crucificado.
Também não é o cálice celta com o seu poder mágico de curar, transformar, fazer renascer. Muito menos do invólucro tanto procurado pelos Cavaleiros da Távola Redonda na época do Rei Artur.
Infelizmente também tenho a dizer que o cálice não é o mesmo que supostamente havia sido escondido a sete chaves pelos Templários, essa ordem religiosa que se tornou um mistério dentro da própria Igreja.
Não, não beberei do doloroso cálice imposto a Cristo no seu sofrimento. Ele sabia da iminência do pior que viria acontecer, já pressentia o martírio que sofreria. Então pede ao Pai que afaste de si o cálice transbordando o seu próprio sangue.
E nesse momento de dor e tormento disse Jesus, segundo o Evangelho de Mateus: “Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice! Todavia não se faça o que eu quero, mas sim o que tu queres” (26,39); “Meu Pai, se não é possível que este cálice passe sem que eu o beba, faça-se a tua vontade!” (26,42).
E o Evangelho de Marcos diz o mesmo: “Aba! (Pai!), suplicava ele. Tudo te é possível; afasta de mim este cálice! Contudo, não se faça o que eu quero, senão o que tu queres” (14,36). Repetido no Evangelho de Lucas: “Pai, se é de teu agrado, afasta de mim este cálice! Não se faça, todavia, a minha vontade, mas sim a tua” (22,42).
Então, se o padecimento fosse seu inevitável destino, morrendo em nome da salvação, que a lança do soldado romano Longinus transpassasse a pele, ferisse seu ventre, seu peito, seu coração, porque assim estava escrito. Daí Ele dizer que se esta for a vontade do Pai que o cálice se encha do sangue derramado no seu grito de dor.
Mas quem sou eu para antever o padecimento futuro, para temer o que mais tarde venha me acontecer, se não cimentei pelo caminho o passo firme daqueles que sabem que serão tentados? Cimentando o caminho, quando o cálice lhe é oferecido, este já não terá força para destruir tudo o que foi construído.
Humano que sou, frágil, capaz de trair a mim mesmo, dificilmente suportaria ter adiante um cálice transbordante que não desejasse derramá-lo dentro de mim. E depois, ébrio sem conhecer da bebida, apenas sofrer as consequências e penitenciar-me indagando por que primeiro não conhecer a bebida para depois bebê-la, por que primeiro não conhecer a estrada para depois caminhar, por que primeiro não prestar atenção para depois fazer.
Beberei do cálice da salvação. Diz a Bíblia, no Salmo 115,4: “Erguerei o cálice da salvação, invocando o nome do Senhor”. Eis que com o Seu sofrimento aprendi a evitar muitos dos cálices que todos os dias me são impostos. E estando sobre a proteção divina, o líquido venenoso será transformado em suave deleite.
Mas qual será o cálice da salvação, se muitas vezes a sede é tanta que somos levados forçadamente ao erro, ao pecado, a cometer injustiças? Creio que o cálice da dor e do sofrimento que se experimenta diretamente é bebida que só deve ser sorvida com máximo temor, ainda que o seu conteúdo pareça tão belo, agradável e confortante, sem apresentar perigo ou ameaça alguma.
Somos frágeis demais, há que se repetir. Somos um nada, um simples grão. E nessa condição qualquer pingo que se derrame diante poderá ter o dom da inundação, da destruição, da completa devastação. E eis porque a bebida sempre é oferecida em taça reluzente, rica, brilhosa: simplesmente para o encanto com o nefasto conteúdo.
Porque somos frágeis demais, somos um grão no tempo, não nos resta outra coisa senão tomar na mão este cálice e nos perguntar, antes de aproximá-lo à boca, se temos forças para suportar a dor que virá. Jesus sabia das marcas profundas que sofreria, e por isso mesmo pediu para que o cálice lhe fosse afastado. E nós, temos forças para evitá-lo?
Mas não evitarei o cálice se vejo por dentro, misturada à bebida, a lição do Senhor. Bebeu do cálice tomando para si a sede do homem, em nome deste todo o sofrimento, e por isso mesmo não deixaria que o seu filho padecesse o mesmo tormento.
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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