Rangel Alves da Costa*
Fazendo de um tudo para acreditar somente no que seja estritamente verdadeiro, infelizmente tive de reconhecer o valor da mentira. E ao reconhecer logo me veio a necessidade de valorizar também o exímio mentiroso, aquele que com demasiada cara de pau encontra uma inteligência que não tem para outras coisas, e faz de um deslavado embuste um fato de indescritíveis proporções.
Fato é que não é qualquer um que nasce com o dom da mentira e mais tarde, quando já tem plena consciência do que diz e faz, expõe com genialidade sua grande arte da calúnia, da aleivosia, do disparate, da falsidade, do mais puro invencionismo, do mau-caratismo exacerbado. Tudo isso por ser mais amigo da criação de fatos inexistentes do que da realidade visível e confirmada.
Mesmo perfazendo-se através de abomináveis estratégias, a verdadeira mentira não deixa de ser uma arte e o grande mentiroso um verdadeiro artista. Ora, as conceituações não deixam mentir. Até mesmo os livros e as enciclopédias se preocupam com essa ignóbil aptidão. Certamente é também foco de estudo da Psicologia e de outras ciências que se voltam para a análise das satisfações bizarras que estão predispostas em alguns comportamentos humanos.
Segundo os estudiosos, mentir significa dizer mentiras ou negar o que se sabe ser verdade, ou ainda proferir como verdadeiro o que é falso; contar ou afirmar algo não verdadeiro, sabendo que não é; faltar com a verdade e não cumprir com a promessa, com o dever, com o juramento, com o prometido; induzir em erro, enganar, falsear, adulterar, afirmar o inexistente.
Por consequencia, a mentira é o ato ou hábito de mentir; afirmação contrária à verdade, engano propositado; é a ação ou resultado de mentir; afirmação que não corresponde à verdade, feita com a intenção de enganar. Segundo o Houaiss, mentira significa “dizer, afirmar ser verdadeiro (aquilo que se sabe falso); dar informação falsa (a alguém) a fim de induzir ao erro, não corresponder a (aquilo que se espera); falhar, faltar, errar, causar ilusão a; dissimular a verdade; enganar, iludir, não revelar; esconder, ocultar.
E como agente disso tudo está o mentiroso, que é aquele que mente, que propaga inverdades, o enganador contumaz, o que inventa uma aleivosia e se esforça para que o primeiro ouvinte, crente que seja verdade, saia espalhando os embustes, as enganações, as falsidades. E tem gente que acredita tanto naquilo que inventa que é capaz de criar inimizade com aquele que lhe desmoralize com a verdade.
Contudo, não se fala aqui em mentirinhas bestas, pequenas enganações, do tipo ocultar a verdade para evitar um mal maior, dizer a menor quando sabe que o fato teve grandes proporções. Tais mentiras até que são justificáveis, dependendo das consequências que a verdade poderia causar.
Mas tem gente que amanhece e ainda deitado na cama já fica imaginando qual mentira espalhar naquele dia. E pensa e pensa, imagina de trás pra frente e da frente pra trás, e então lhe surge um sorriso maldoso no rosto. Eis que já descobriu o que vai falsamente espalhar. Naquele dia vai dizer à vizinha que a beata tida como a mais séria do lugar, esposa de alta autoridade, mantém encontros amorosos com o padre na sacristia. E dizendo a fofoqueira do lado já sabe que logo a cidade inteira já estará abismada com o fato novo.
E é um deus-nos-acuda para desfazer uma mentira bem criada e devidamente propagada. O verdadeiro mentiroso nunca aparece, pois cada um vai dizendo apenas que ouviu de alguém que ouviu de sicrano ou beltrano, e assim por diante. Na maioria das vezes não se cita o nome de ninguém, apenas que ouviu dizer e pronto. E o fuzuê já está feito, o nome enlameado, a honra ferida.
Tem muita gente que já morreu diversas vezes através da boca de mentirosos; quanto mais a pessoa é séria e honrada mais é atacada pelas costas, com conversinhas que vão desde sua reputação exterior à sexualidade. Tem gente que cria inimizade entre pessoas e famílias, espalham inverdades que levam ao confronto pessoal, muitas vezes causando mortes.
Outras vezes chama o outro num canto e diz em segredo que por ser seu amigo é que se sente no direito de dizer que estão espalhando pela cidade que ela é isso ou aquilo, que fez isso ou aquilo outro. Tudo mentira. E a pessoa sai preocupada em busca de quem está mentindo e criando inimizade em cada passo. E o verdadeiro mentiroso, tranquilamente na sua janela, sorrindo de se acabar.
Mas não é raro de o feitiço virar contra o feiticeiro. Um mentiroso afamado, não tendo mais o que inventar, simplesmente começou a espalhar que o mundo acabaria dali a um mês, pois esse segredo o Vaticano só tinha revelado agora. Então o ouvinte rebateu dizendo que só se fosse o mundo dele, do próprio mentiroso, vez que o médico não havia lhe dado mais nem esse tempo de vida.
E o mentiroso perguntou como ele sabia dessa história, já que o doutor havia dito que ele era mais forte que um touro. E o outro sorriu e disse que o médico havia mentido pra ele não morrer antes do tempo, mas que pudesse ir logo se despedindo. Então o outro sentiu uma pontada no peito e caiu morto.
Mas ninguém acreditou que o mentiroso havia morrido.
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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