Rangel Alves da Costa*
Um misterioso e antigo manuscrito, algo parecido com um códice já sem idade, despencou da parte mais alta da estante na biblioteca de aspecto medieval, agora visitada por traças. Ao tocar no piso levantou poeira secular e fez um tremendo barulho, ecoando pelas vastidões solitárias do mosteiro.
Ninguém surgiu nas portas, corredores ou cubículos secretos para ver o que era ou que tinha acontecido. Tanto barulho e nenhum ouvido atento, preocupado. Ao cair, o velho manuscrito abriu-se e deixou estampado, com letras magistralmente desenhadas uma a uma, ainda legíveis pelo cuidadoso trabalho dos monges copistas. E mostrava:
“Sobre a terra, abaixo do céu, em qualquer lugar que houver o passo também haverá o pó, onde houver a fé também haverá a descrença, onde houver o templo também haverá o nada, onde houver o mistério também haverá o desvendamento, onde houver a demasiada pureza também haverá o pecado. Naqueles que pregam a pureza espiritual, e neste véu se escondem para os atos insanos e as perversões, restarão apenas a poeira que a ventania se absterá em soprar. E por ser assim nos mosteiros e nos demais templos sagrados um dia tornadas antros pecaminosos por pervertidos religiosos, desvirtuados na sua missão clerical, deixando de fazer cumprir, respeitar e venerar os ensinamentos, chegará um dia, quando este livro cair do seu esconderijo mais alto, que o olho do homem que quiser ver, encontrará aqui e espalhado pelos arredores, o cemitério da perdição...”.
Um dia, há muito tempo atrás, chegou até ali um mensageiro papal e logo estranhou toda aquela ambientação escurecida demais, com imensas dependências e corredores que mais pareciam labirintos tomados por olhos que se escondiam por todo lugar. Apenas uma ou outra chama crepitando ao longe, talvez apenas um sinal de que ali era um caminho levando em outra direção.
O mosteiro era imenso, construção feita em pedra e muitas vezes aproveitando das paredes das próprias rochas em cujas vizinhanças acabou sendo erguido. Diziam os historiadores que tudo havia sido levantado por religiosos desterrados até ali por causa dos crimes carnais que haviam cometido. Não somente padres e missionários, mas também gente do clero superior e até cardeais.
Para fugir das prisões medievais comuns e degradantes, jogados em poços enlameados, em cubículos gotejantes, e entregues à desgraça das doenças e humilhações de todo tipo, foram mandados para as distâncias áridas das montanhas desérticas. Ali tinham a missão de trabalhar para sobreviver e o ofício único oferecido era o talhar a rocha, abrir caminho nas pedras, levantar paredes e muros para o grande mosteiro.
E quais crimes haviam cometido para serem jogados naquele fim de mundo e para realizar trabalho tão penoso? Tudo que o religioso, um vocacionado não deveria fazer: o pecado da carne, a martirização pela carne, a dor e o prazer na carne, a volúpia, a tara, a fome sexual, a entrega absoluta e total aos prazeres da carne. Só que tudo escondido, tudo veladamente, fazendo parecer a cada um mais desatento que estava diante de um verdadeiro homem da igreja.
E como tais crimes eram cometidos? Ninguém sabe ao certo como as práticas pecaminosas ocorriam, eis que dentro das próprias igrejas, mosteiros, abadias e outras circunscrições religiosas, locais onde somente a própria igreja tinha jurisdição e poderia investigar. Até que um dia os buchichos ultrapassaram os muros e a parte mais conservadora do clero exigiu providências.
Mas sabe-se, por exemplo, da castidade convertida em homossexualismo, da solidão para a prece transformada em masoquismo, da abstinência convertida em ataques e estupros perante os jovens enviados até ali com intuito de inicialização religiosa, da circunspecção transformada em afetações afeminadas. Além do crime mais grave: aquele religioso que delatasse a prática do outro estaria com os dias contados. Amanhecia com páginas e mais páginas dos livros litúrgicos na boca, com terços amarrando as mãos para trás e uma imensa vela acesa saindo do ânus. E dizem que morriam felizes assim.
E naquele mosteiro abandonado não havia sido diferente. Quando o mensageiro papal adentrou, além da escuridão encontrou somente ruídos lamuriantes, lamentos cadenciados, sussurros longos e melancólicos. E toda porta que empurrava, nos escondidos dos quartos e salas ia encontrando novos e velhos parecendo em total insanidade.
Um jovem nu dava chibatadas num velho cardeal, dobrado sobre uma cadeira e tendo a vestimenta religiosa levantada até as costas; um cônego se masturbava com os olhos voltados para uma imagem sacra; um gorducho batia nas próprias costas, já marcada de lanhos, com terços e rosários contendo objetos pontiagudos; um vigário ancião era puxado à moda dos animais, com uma corda no pescoço, por um coroinha em completa nudez.
Após visões tão medonhas, dantescas e inimagináveis, o mensageiro nem pensou mais em procurar o superior do mosteiro. Temia encontrar o pior. Temia encontrar orgias e bestialidades. E correu para a porta de saída, indo parar somente muitos dias depois na sede maior da religiosidade. Após relatar abismado o que tinha visto, ouviu do Corregedor da Máxima Ordem Disciplinar da Religiosidade:
“Sua viagem foi longa. Certamente ao chegar lá pensou ter visto aquilo que verdadeiramente não viu. E o que viu, acaso viu, não tem importância alguma. Ninguém acreditaria num louco. E você está louco. Todo mundo sabe que você está louco”.
E em seguida, afeminadamente refrescando-se com um leque dourado, deu um gritinho chamando alguém para conduzir o insano até o hospício. Mas antes de ser conduzido amarrado, o mensageiro virou-se para o religioso e disse:
“Esta Igreja cairá como um templo em ruína. E a falsa fé que apregoam se tornará poeira que o vento cuidará de dar melhor destino. Ou a Pedra esmaga os infiéis ou tudo se repetirá secularmente. E a Igreja que dizem ser já não será mais. Basta olhar nas suas entranhas apodrecidas”.
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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