Rangel Alves da Costa*
Firmemente decidida a cortar caminho naquele mesmo instante, estava também disposta a sair por aí pelas estradas sem levar nada, uma roupa, dinheiro, uma mochila com comida. Nada. Absolutamente nada. Parecendo loucura, mas pensou até em seguir nua.
Seria a nudez do corpo e ao mesmo tempo a face completa, sem disfarces e nada por cima, da dor, do sofrimento, da desesperança, da agonia, da aflição numa mocinha tão bela e com uma longa vida ainda pela frente. A nudez sem medo, sem receio, sem temor. Um corpo tão belo, jovial, atraente e nu, apenas uma mulher vestida de sol.
Seria a mulher vestida de sol prevista no capítulo 12 do Apocalipse?: “E viu-se um grande sinal no céu: uma mulher vestida do sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça”. Esta mesma mulher ensolarada que “fugiu então para o deserto, onde Deus lhe tinha preparado um retiro para aí ser sustentada por mil duzentos e sessenta dias”.
No seu passo, será que a mulher vestida de sol, acaso atacada pelos dragões e serpentes da maldade conseguiria sobreviver? A mulher do Apocalipse estava protegida por Deus, e será que Crisosta, a partir desse ato impensado, dessa fuga do berço de sua descendência, ainda seria vista com clemência pela divindade?
Diz ainda o Apocalipse que “à Mulher foram dadas duas asas de grande águia, a fim de voar para o deserto, para o lugar de seu retiro, onde é alimentada por um tempo, dois tempos e a metade de um tempo, fora do alcance da cabeça da Serpente. A Serpente vomitou contra a Mulher um rio de água, para fazê-la submergir. A terra, porém, acudiu à Mulher, abrindo a boca para engolir o rio que o Dragão vomitara”.
Quantas forças estariam ao lado de Crisosta na sua incerta peregrinação? Se ali houvesse outra pessoa, uma voz que lhe alertasse sobre os perigos de levar a efeito tal decisão e a total desnecessidade de se fazer isso, talvez até que refletisse, ponderasse um pouco e mudasse de opinião.
O problema é que estava e vivia sozinha, sem ninguém ao lado nem por perto, sem qualquer presença física que lhe transmitisse um alívio. O cachorro nem latir latia mais. Depois do sepultamento de seu verdadeiro dono só queria estar por dentro dos matos, indo todos os dias ao lugar da cova e ficando sentado ao lado quase o dia inteiro. Doloroso demais era ver a tristeza sempre estampada no animal de amizade e caçada.
Não havia nenhuma outra presença física ali, contudo alguém ou alguma aparição se fez a providência naquele momento de difícil decisão. Não chegou através de olhar, de gestos nem de palavras, mas chegou no momento exato e para fazer aquilo que depois se transformaria num grande conselho, numa verdadeira e importante lição.
E tudo através da chama de uma vela, tudo através de uma vela acesa. Que poder possui uma vela acesa nas igrejas, santuários, oratórios, luminando num cantinho reservado de uma casa! Aquela dali estava acesa bem ao lado da banquinha onde ficava o oratório no quarto dos falecidos pais da mocinha.
Quando ela entrou ali para o último adeus ao ambiente tão familiar, à presença dos seus que parecia continuar, os olhos logo se voltaram para a vela acesa. Não podia acreditar no que via, não imaginava como aquilo poderia ter acontecido. Tinha certeza absoluta que ela mesma não havia entrado ali para tornar acesa aquela chama. Mas como aquilo poderia ter ocorrido, quem teria feito aquilo?
Sem pensar muito, logo foi impulsionada a dobrar os joelhos e se posicionar em oração. Mas da sua boca não saiu uma prece, mas um Salmo de partes diversas de Salmos, palavras utilizando aquela boca para serem transmitidas. Salmos diversos numa só lição:
Até quando, Senhor, de todo vos esquecereis de mim?
Por quanto tempo ainda desviareis de mim os vossos olhares?
Até quando aninharei a angústia na minha alma,
e, dia após dia, a tristeza no coração?
Guardai-me, ó Deus, porque é em vós que procuro refúgio.
Senhor, vós sois a minha parte de herança e meu cálice;
vós tendes nas mãos o meu destino.
O cordel mediu para mim um lote aprazível,
muito me agrada a minha herança.
Bendigo o Senhor porque me deu conselho,
porque mesmo de noite o coração me exorta.
Ponho sempre o Senhor diante dos olhos,
pois ele está à minha direita; não vacilarei.
É junto do Senhor que procuro refúgio.
Por que dizer-me: Foge, velozmente, para a montanha, como um pássaro;
eis que os maus entesam seu arco, ajustam a flecha na corda, para ferir,
de noite, os que têm o coração reto.
Quando os próprios fundamentos se abalam,
que pode fazer ainda o justo?
Entretanto, o Senhor habita em seu templo,
o Senhor tem seu trono no céu.
Sua vista está atenta, seus olhares observam os filhos dos homens.
Em seguida abriu os olhos e disse a si mesma, parecendo com outra voz: “O Senhor me pede para ficar aqui, para não fugir rumo às montanhas. E me pede ainda para que cuide da herança. E a que ele me doou é muito maior que essa terrena que possuo. Hei de preservar as duas”.
Olhou novamente adiante e não encontrou mais acesa a chama da vela. Reacendeu-a e se encheu de esperança. Ao menos por enquanto.
Continua...
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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