SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 16 de março de 2012

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: AFLIÇÃO

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: AFLIÇÃO

                                          Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
Depois de sair na porta de casa, olhar atentamente o horizonte, mirar o comportamento das folhagens secas da mataria, o velho sertanejo entrou na cozinha e começou o seguinte diálogo com sua velha esposa:
“Inté que enfim vai chover. A chuvarada já tá chegano e vai ser de trovoada. De hoje madrugada inté cedinho já se ouve trovejar, se num chegar bem antes. O céu tá escurecido demai e logo se avista relampejar cortando o céu de canto a outro. É chuva muié, é a chuva boa que vem...”.
“E sofrimento tomem, coisa ruim que num quero nem me alembrar...”. Disse a mulher, encorajando o esposo a perguntar: “Mai do que vosmicê tá falano muié? Eu dixe que vem trovoada e ouço que vem tempo ruim. Será que foi isso que vosmicê dixe mermo?”.
E a mulher respondeu, com cara de entristecimento:
“Foi isso mermo meu véio, foi isso mermo. E veja só cuma é a vida de pobre, de gente cuma nóis que vive nessas brenhas sertaneja, na miséria, cercada pela farta de tudo. Já fazia mai de ano que num chove e vai a gente rezar todo dia implorano a Deus e todo os santos pra chuva chegá logo, pra derrubar moiação. E chega o dia que parece que tudo ouve as nossa reza e nossa promessa e o tempo bonito de chuvarada se forma lá em cima. E se vem chuva de trovoada mió ainda, pruque é siná que vai moía muito a terra, vai encher os barrero e os tanque, logo logo vai ter prantação. Mai por outo lado...”.
“Por outo lado o que, muié de Deus, desembuche logo esse conversê...”. Disse o esposo, ansioso para saber até onde ela queria chegar. E a mulher continuou, olhando pra cima, para o telhado e as paredes, e dessa vez com ares mais tristes ainda:
“Cuma eu ia dizeno, a chuva vai ser boa pra umas coisa, mai tomem vai ser muito ruim pá gente, meu véio. Vosmicê inté que tentou, que pediu ajuda lá aos político da cidade, recebeu muita promessa, mai nada de consegui nada pá mudar a situação de nossa moradia. E ói só cuma tá nossa casinha, desteiando, caino as parede de barro, tudo fraco e amolecido, troncho e imprestave, cuma se num guentasse nem um vento mai forte, e cuma numa guenta mermo...”.
Ao ouvir isso, foi a vez de o homem ficar angustiado também, A aflição ficou estampada em seu rosto enrugado, os olhos brilharam ainda mais, porém de um jeito agora diferente, cheio de temor e desesperança. E disse:
“Tem razão, muié, tem razão. Acabou de dizer a maior certeza do mundo. A chuva vai cair e nossa casinha num vai ficar em pé não. Chuva de trovoada sempre chega trazeno muita ventania, muita força que vai derribano tudo que acha pela frente. E se agente ficar aqui quando o pingo grosso cair, entonce o teiado e parede corre o risco de desabar por riba da gente e de tudo. Entonce num tem mermo jeito, vamo arrumar o que puder e sair daqui quano a chuva começar a cair...”.
“E vamo se arranchar adonde, meu véio?”. E ele respondeu, já segurando um saco: “Debaixo do umbuzeiro, minha véia, debaixo daquele umbuzeiro ali”. E quanta aflição, ali debaixo, os dois abraçados como há muito não faziam, sentindo a chuvarada faminta cair e levando tudo de sua moradia.   




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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