ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: LAMPIÃO E PADRE ARTUR, A BUCHADA E A HÓSTIA (final)
Rangel Alves da Costa*
O relato anterior esbarrou bem no momento em que Dona Marieta e o Padre Artur quase desmaiam diante da afirmativa de Lampião de que ele e os seus homens iriam também assistir a missa que mais tarde seria celebrada em louvor à padroeira.
Não só a dona da casa e o vigário, mas qualquer um em sã consciência não acreditaria numa conversa dessa. Quem já se viu Lampião e o seu bando de cangaceiros dentro de uma igreja, ouvindo missa, orando, talvez pedindo perdão pelos pecados cometidos pelas caatingas e povoações?
E mais. Era impossível ao menos imaginar aqueles homens com cara de poucos amigos, com feições, gestos e vestimentas que espalhavam o medo e o terror, dentro de uma igreja ao lado de beatas e outras pessoas da comunidade. E o pior é que atrevidos como eram, tendo que estar dia e noite levando pra todo lado aquelas armas medonhas, ninguém duvidaria que quisessem também assistir o ofício religioso armados até os dentes.
E não se podia esquecer que até corria o risco de ninguém da comunidade estar presente à igreja na hora da missa mais importante do ano. Só pelo fato de os cangaceiros estarem no lugar, muitas famílias já havia batido o pé na bunda e agora estavam à moda dos preás, escondidos debaixo das tocas, por traz das moitas, ou quem sabe ainda numa carreira desembestada.
Para melhorar do susto tomado, o Padre Artur teve que mirar bem a buchada que estava em cima da mesa. Desde que ouviu a conversa de Virgulino que estava com língua travada, sem força pra dizer qualquer coisa. O jeito que teve foi pedir a China que lhe servisse mais um tiquinho de casca de pau pra abrir o apetite.
Como não imaginava a terrível aflição que acabou causando, Lampião por enquanto não falou mais na sua pretensão. Seria mais adiante. Tomou também outra talagada miúda e acenou para o vigário, convidando-o a dirigir-se até a mesa. O religioso foi com maior gosto do mundo, mas quando ia se servindo da primeira remessa ouviu uma pergunta do Capitão que lhe entravou de vez o apetite descomunal.
E o pior acabou acontecendo. Lampião relembrou o assunto descontentoso e perguntou se na missa tinha lugar pra ele e seu bando. E o mundo começou a desabar novamente para o vigário. A colherada que já ia à boca parou no meio do caminho, o homem se engasgou sem ter engolido nada. Tossiu, grunhiu, fez o que pôde para não morrer sufocado, e depois, já refeito, olhou vivamente nos olhos do rei do cangaço e disse:
“Capitão Virgulino, com todo respeito que tenho ao senhor e sua luta, ainda que a mesma seja ferozmente contestada por muitos, creio que tem sabedoria suficiente para saber das terríveis consequencias que seria aceitá-los, ainda que como beatos e cristãos, assistindo um sermão na minha igreja, fazendo o sinal da cruz e se ajoelhando diante da imagem sagrada. Contra a minha humilde pessoa certamente recairão consequencias também muito gravosas. Haverá uma forte tendência de a igreja, no afã de encobrir seus erros e dizer que é contra qualquer tipo de violência, querer me expurgar de minhas funções religiosas. Ademais, parte da sociedade irá dizer que sou verdadeiro coiteiro, amigo e servidor da cangaceirada, e que a igreja está servindo de coito. E não somente isso, pois...”.
Mas foi interrompido por Lampião, que após se desculpar por cortar-lhe a palavra foi logo dizendo:
“Mas o senhor, seu vigário, tem toda razão. Não seria mesmo de se pensar diferente, ademais quando ninguém jamais imaginou que um dia acontecesse de o bando cangaceiro de Lampião assistisse missa numa igreja. Ora, Padre Artur, de forma errada a maioria das pessoas só nos enxerga como um bando de gente cruel, assassina, perigosa demais e que vive assombrando a tudo e a todos. Ninguém vive falando de nossa luta, do nosso compromisso em combater as injustiças policiais, coronelistas e dos poderosos que se espalham por aí. Não somos nem santos nem anjos caídos, não somos o mal nem o bem, mas também não somos o que dizem por aí. E todo mundo, inclusive o senhor vigário, parece esquecer de uma coisa muito importante. Cangaceiro não é fera, bicho, um malvado por nascimento nem por sina. Cangaceiro é gente igual a todo mundo, com família, com sangue correndo na veia, com coração e sentimento. Cangaceiro é humano, é amigo, é religioso. E é nessa condição de homem e religioso, temente a Deus em todos os sentidos, que mostra sua fé na oração e prece de todo dia, que lhe digo que seria a maior injustiça do mundo impedir que o cristão possa assistir missa e louvar o Senhor Nosso Deus...”.
“O Capitão tem razão, Padre Artur. A igreja é de todos e missa não é apenas pra beata, mas pra todos aqueles que possuem Deus no coração”. Disse China, de olhos molhados. Então o vigário deu um largo sorriso e pediu para que uma garrafa de vinho fosse aberta.
Mais tarde, ao entardecer, na igrejinha de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, uma cena inesquecível, digna de entrar para os anais da história: os cangaceiros lá dentro, compenetrados, fervorosamente assistindo missa, e todas as armas dispostas no lado de fora, colocadas ao pé da parede do templo cristão.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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