ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: LAMPIÃO E PADRE ARTUR, A BUCHADA E A HÓSTIA (III)
Rangel Alves da Costa*
Como afirmado anteriormente, o Padre Artur Passos não só estava do outro lado da porta do quarto ouvindo Lampião dizer a China que iria bater na madeira do seu aposento para uma conversinha, como já se preparava colocando munição numa arma para qualquer eventualidade.
Como estava de ceroulas, totalmente desprevenido, o velho religioso deu um pulo em direção à batina assim que ouviu o rei dos cangaceiros dizer que havia chegado o momento de importunar o dorminhoco, e até mesmo porque já estava chegando a hora do almoço e as comidas que estavam sendo preparadas por Dona Marieta já cheiravam pelo ar desbragadamente. E um cheiro em especial, o de buchada, deixava qualquer cristão de água na boca e o estômago em desespero.
Sentindo aquele aroma temperoso todo, Lampião pediu a China pra chamar Dona Marieta um instantinho, pois queria confirmar com ela se no almoço daquele dia ia ser servida buchada também. O homem deu um grito pela esposa e a pequenina senhora chegou no passo do vento. Ao ouvir a pergunta e os elogios do Capitão, a sempre alegre dona da casa foi logo dizendo:
“Não tem só buchada de bode gordo como também galinha ao molho pardo e o próprio bode ensopado. Tem galinha de capoeira também e mais um sarapatel bem temperado que mandei fazer. É comida pra se lambuzar e dormir um pouquinho Capitão, pois pratos muito pesados e sonolentos. E é por isso que sei que o Padre Artur nem vai triscar nesses pratos. Pra ele preparei uma comidinha leve, que vou mandar servir ali mesmo no quarto...”.
Ao ouvir as últimas palavras de Dona Marieta, a um só tempo Padre Artur e Lampião se apavoraram. O primeiro porque doido pra gritar que a mulher nem se atrevesse a mandar ali papinha ou mingauzinho, pois queria mesmo era experimentar de tudo aquilo que ela havia preparado. E o segundo porque desejava por tudo na vida sentar à mesa com o padre, fazer da comilança a união, ao menos que passageira, de forças aparentemente antagônicas.
Mas Lampião se aproximou de Dona Marieta e disse: “Minha boa amiga, já conheço do que sua mão é capaz de preparar para receber, mas não precisava tanto. Quem está acostumado a comer preá sapecado e palma despinhada não pode se dar ao luxo de tudo isso. Mas como sei que faz de coração, então não vou negar minha gratidão. Tanto eu como o meu bucho pelancudo. Mas vou pedir um favor, e me atenda se for possível: não mande a comidinha do Padre Artur pra o quarto não, coloque a papinha ali mesmo na mesa na hora do almoço. É que eu preciso sentar na mesma mesa que ele, ter uma conversa séria de homem pra homem, olhando olho no olho...”.
O Padre Artur, que já estava de ouvido a postos novamente, quase dá um chilique nessa hora. O simples fato de ouvir que sentaria à mesa com o rei dos cangaceiros, o capitão do sertão, lhe causou um rebuliço danado. Não era que tivesse medo nem odiasse o homem, pois até que o tinha com certa consideração.
Mas a verdade é que sua posição não permitia. Era padre, um religioso a espalhar ladainhas contra todo tipo de violência, soltando o verbo nas missas contra a famigerada guerra entre volantes e cangaceiros e que tanta gente inocente já havia vitimado. Tinha vontade de dividir a mesa com o homem, mas o seu ofício religioso não permitia. Ademais, se chegasse aos ouvidos do bispo que estava mancomunado, dividindo mesa, brindando com Lampião, então estaria ferrado.
Mas havia ainda outras coisas a considerar. E se acaso Lampião, sabendo que ele falava mal de sua guerra, viesse com afronta, desembainhar o punhal e colocar na sua goela? E se acaso o rei do sertão o colocasse na parede e fizesse umas perguntas desaforadas? E se, de repente, a arma que usava não fosse suficiente para se defender perante o rei da valentia? O problema é que não podia mostrar medo, não podia fugir dali pulando a janela. Ademais, estava com uma vontade danada de lamber os beiços na buchada da amiga Marieta.
Estava ainda envolto em pensamentos tais, e ainda por trás da porta, quando ouviu um toque na madeira. Assustou-se, perdeu o equilíbrio, quase cai. E depois mais outro e outro toque e em seguida uma voz que não podia ser de mais ninguém senão de Lampião. E dizendo:
Mas conto amanhã o que disse o Capitão.
Poeta e cronista
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