SAUDADES ETÍLICAS (REVOLUÇÃO E INTELECTUALIDADE NA MESA DE BAR)
Rangel Alves da Costa*
Que não imaginem que o presente texto se volta para a apologia da bebida, do porre, da farrice, da bebedeira, da ebriedade e embriaguez. Mas também podem imaginar que sim, pois trata também sobre isso, porém de modo a mostrar o que a mesa de bar representou na formação da cultura, da intelectualidade e dos tantos movimentos libertários que antigamente existiam.
Visualizem a seguinte situação. Já é boca da noite e um sujeito apressado, com roupas e cabelos desgrenhados, fumando um cigarro, chega ao barzinho de sempre, senta na mesma mesa e nem precisa avisar ao garçom ou ao dono do botequim o que pretende tomar. Não precisa porque já conhecem os seus hábitos etílicos, bastando servir primeiro o uísque e depois a cerveja.
Visualizem a cena seguinte: De uma pastinha o indivíduo tira papéis, jornais e até livros. Enquanto fuma e bebe vai remexendo numa coisa e noutra, lendo rapidamente algumas linhas, fazendo anotações, parecendo mesmo distante do mundo. Porém fica pouco tempo ali sozinho nos seus afazeres etílicos e de escrita e leitura, pois logo chega alguém vestido num paletó amassado e usando calça jeans. Senta na cadeira que já o espera, e também não precisa pedir nada no bar, pois logo lhe chega o litro da costumeira bebida.
Pensem na próxima cena. Aquele indivíduo que já estava lá parece nem ter sentido a chegada do outro, pois não houve cumprimentos nem diálogos abertos, e somente depois que o recém chegado toma a primeira dose é que lhe joga na frente alguma coisa escrita. E então começa um diálogo que mais parece uma discussão, com vários palavrões e xingamentos, mas não que desejem agredir-se, mas contrapondo-se ou defendendo aquele escrito.
Agora pensem quem deveria ser aqueles dois. Vou dizer. O primeiro que sentou à mesa é jornalista, um famoso editorialista de jornal de grande circulação. Reconhecido como antigovernista, reacionário e até anarquista, possui uma escrita ferina e é temido por grande parte dos políticos e poderosos. Mas parece um zé-ninguém, apenas alguém que chega num bar simplesmente pra beber.
Quanto ao segundo, digo que este é homem de grande cultura, verdadeiro intelectual, crítico literário e poeta. Mas também, como o próprio se intitula, um libertino libertário, escritor, ex-comunista, ex-socialista, ex tudo, e agora apenas alguém que não vive um só dia sem contar com aquele encontro noturno para discutir a vida, falar mal dos governantes, pregar revoluções, desconstituir teorias e produzir coisas geniais.
Isso mesmo, pois naquela velha mesa de bar, naquele barzinho de aparência rústica, em meio a encontros etilicamente revolucionários, nasceram poesias magistrais, surgiram composições memoráveis, foram entoados os primeiros versos da música genial. A lágrima foi chorada, a glória emergida.
Dali a pouco vão chegando outros e mais tantos outros jovens e velhos, todos com aspectos de liberdade demais no vestir e no andar, ávidos pelo primeiro gole, loucos para entrar com ferocidade na primeira discussão surgida. De repente a mesa, que agora são duas, está completamente tomada por jornalistas, compositores, poetas, escritores, diplomatas, gente que está ali para se deliciar do prazer da conversa, da criação e principalmente da vasta bebida, da fumaça incontida do cigarro, do pratinho que chega com tira-gosto.
Logicamente que aqueles dois primeiro personagens citados exemplificam apenas pessoas adeptas a uma manifestação fortemente cultural chamada mesa de bar. Infelizmente não de hoje, mas de ontem e de outros tempos idos. E um tempo onde era permitido ter o barzinho como expressão intelectual, tornar aquele ambiente um cenário de exposição verbal ou vocal daquilo que havia sido produzido, possibilitar que entre uma dose e outra surgissem parcerias, inspirações geniais, discussões que redundavam em manifestos, simples conversas que diziam tudo sobre a situação do país.
Hoje ainda existem esses bares, mas são poucos, e menos ainda a intelectualidade que os possa freqüentar com dignidade. O que hoje é escrito no computador e tendo um copo de uísque ao lado, noutros tempos nascia no papel do guardanapo, riscando a própria mesa, catando qualquer coisa pra preservar a genial criação. E tudo cheirando a limão, tosquiado pela fumaça do cigarro, algo assim que ninguém dava nada naquele momento.
E dizem que certa vez Vinícius de Morais saiu embriagado de um desses barzinhos e levando consigo a toalha da mesa. Ora, ali estava escrito um de seus mais famosos sonetos. Jaguar, o do Pasquim, lembra bem que via enquanto ele rabiscava, mas não conseguia ler nada: também estava bêbado.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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