ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: LAMPIÃO E PADRE ARTUR, A BUCHADA E A HÓSTIA (IV)
Rangel Alves da Costa*
Como dito anteriormente, o Padre Artur, por detrás da porta do quarto, já todo cheio de batina preta e portando uma arma carregada de munição num dos bolsos, estava no maior avexame do mundo porque ouviu o Capitão Lampião dizer que iria lhe acordar.
Era afronta demais, mas fazer o que, se desse danoso ninguém pode esperar coisa boa? Indagava o vigário, se corroendo todo. Ademais, vai que o homem cisma de aparecer com violência, então tudo se lascou mesmo. Completou. Mas quando ouviu o toque na porta é que o desespero aumentou.
Pensou em abri-la já de arma na mão, num instante já queria atirar através da madeira, noutro instante quis entrar debaixo da cama e ficar ali escondidinho. Não pensou mais, não teve outras ideias mirabolantes e desesperadas porque não teve tempo. Após a terceira batida na porta, e esta ainda mais forte, irrompeu a voz de Lampião do outro lado:
“Padre Artur, louvado seja em nome do Senhor nosso Deus. Quem bate é o Capitão Virgulino Ferreira da Silva, mas não se avexe nem pela honraria nem pelo nome, pois vim como cristão e quero paz. Me adesculpe por chamar o senhor assim em plena hora de cochilo reparador, mas é que já tá na hora do regabofe, na melhor hora do dia, principalmente aqui na casa de Dona Marieta e meu amigo China. Então achei por bem lhe convidar pra compartilhar da mesa que vai ser servida. Se tiver me ouvindo e aceitar o convite dê algum sinal como resposta”.
Astuciosamente o vigário recuou, agora muito mais aliviado, e começou a cantarolar sua resposta: “Bendita e louvada seja/ Nossa Senhora da Conceição/ Padroeira do lugar/ Pra nos dar consolação/ O sertão crê no Senhor/ É hora da devoção/ Despertai todos os devotos/ da Senhora da Conceição/ Jesus Cristo verdadeiro/ Aqui estou em vossa mão/ Toma conta da minha alma/ abençoai o Lampião...”.
Depois disso pediu só um instatinho pra aparecer. Lá dentro, um tanto nervosos ainda, se benzeu, fez uma apressada prece, ajeitou a arma no bolso e se encaminhou para a saída. Pensou de logo dá de cara com o Capitão, mas este já estava no meio da sala providenciando umas duas garrafas de pinga pra abrir o apetite da cangaceirada que estava ao redor, num outro compartimento da casa.
Assim que avistou o padre, Lampião foi em sua direção e fez um gesto de reverência, porém sem beijar a mão do vigário como este pensava. Ainda de mão estendida, meio sem jeito, o da igreja começou a mexer no anel não beijado e arrumou uma desculpa meio esfarrapada, porém astuciosa. De mão erguida e tocando no anel, foi dizendo que aquela joia não tinha o brilho de antes, estava já quase sem nenhum valor, muito diferente daquela que reluzia nos dedos do Capitão.
No momento seguinte e já estava usando o símbolo cangaceiro da vaidade em meio às sangrentas batalhas e correrias. No dedo da igreja, o anel doado por Lampião parecia ser o preço do perdão pelo que diziam que os cangaceiros faziam. Mas não era nada disso, e sim o pacto do sacerdote com o grande representante das guerras catingueiras. Poucos sabiam, mas a igreja também tinha sua luta contra as injustiças sociais e como não vivia formando bando para se contrapor às cruéis realidades, então abençoava os cangaceiros que se entregavam de corpo e alma àquela espinhenta missão.
Após o anel doado, foi o próprio Padre Artur quem teve a ideia de brindar o momento tão especial com uma talagada de cachaça. Dona Marieta chegou correndo trazendo um vinho de jurubeba, o que foi prontamente rechaçado pelo da batina. Naquele instante preferia uma branquinha adormecida com lasca de umburana dentro, cujo vermelho/amarelado lembrava o próprio massapé sertanejo.
Em menos de cinco minutos brindaram duas vezes, mas todos com um olho no copo e outro na mesa adiante que começava a receber as panelas com aquela fartura fumegante. Mas o copo do vigário caiu quando a dona da casa disse que a comida de Lampião, com buchada e tudo mais, já estava na mesa, só faltando trazer o mingauzinho do Padre Artur.
Bastou ouvir pra o copo escapulir e ele sair apressado pra perto de Dona Marieta dizendo: “Com tanta comida assim, com esse cheiro delicioso, essa buchada apetitosa que me salta aos olhos, se a senhora falar em papinha ou mingauzinho sinta-se excomungada!”.
Em seguida ouviu-se de Lampião: “Mas eu e os cabras vamos comer pouco pra não ir pra missa de bucho muito cheio...”.
“Ir pra missa, o Capitão tá dizendo que vai assistir missa junto com os cangaceiros? Valei-me Deus!”. Era Dona Marieta em tempo de desmaiar.
Padre Artur amoleceu das pernas e só não esparramou no chão porque China correu em socorro. Mas o que sucedeu depois disso conto amanhã.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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