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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 27 de abril de 2010

INOCÊNCIA E HUMILHAÇÃO (Crônica)

INOCÊNCIA E HUMILHAÇÃO

Rangel Alves da Costa*


No sertão, quanto mais as pessoas são pobres, carentes, necessitadas de um tudo, mais são bondosas, servidoras do próximo, sempre prontas para ajudar, muitas vezes oferecer o que está muito além de suas forças e de suas posses. Esse espírito bondoso, despido de qualquer interesse maior, já está enraizado naquelas terras desde as primeiras gerações que ali plantaram e fizeram gerar um povo generoso, de mão sempre amiga, mais preocupado com o bem estar dos outros do que consigo mesmo.
Essa predisposição em servir sem ter em mente nada em troca, nos dias atuais, onde quase tudo é na base do "é dando que se recebe", "do venha a nós", do "me dê o meu primeiro", chega até às raias da inocência, da mais pura e sertaneja inocência. Muitos, de tão inocentes que são e procurando, mesmo sem poder, encher a barriga dos outros, deixam de botar comida na boca da família para levar uma galinha gorda, um porco, um peru, um capão ou um bode para pessoas importantes do lugar. Isso é mais freqüente do que se imagina.
Uma dessas criaturas chamava-se Maria Pureza, viúva e já velha aos cinquenta anos, com dois filhos menores, sendo um paralítico e uma velha mãe eternamente adoentada, ganhando o minguado da feira com a lavagem de roupas. Vivia num casebre de barro num pequeno roçado nas proximidades da sede do município. A riqueza que a pequena família possuía se resumia, pois, na choça, num velho carro de bois (sem bois), duas vaquinhas magricelas, um jegue e um cachorro vira-lata, todos só com pele e osso. De criação, a única coisa bonita que se via ciscando pelo cercado eram dois perus, um galo velho e seis galinhas, todos gordos e vistosos.
A pobreza da família não impedia de Maria Pureza ser uma pessoa muito alegre e feliz, amigueira, mulher séria e prestativa. Bastava saber que alguém estava precisando de alguma coisa, de alguma ajuda, e num instante já estava batendo a porta para se oferecer para auxiliar no que fosse preciso. Não tinha nada a oferecer, mas tinha esse bom e bem intencionado coração, que ficava feliz só em procurar estar próximo aos amigos nas suas necessidades.
Como conseqüência desse senso humanitário guardado no coração sertanejo, alguma vezes Maria Pureza praticava ações e tomava atitudes que eram de pura inocência. Como, por exemplo, defender sempre determinados políticos do lugar e acreditar que eles iriam construir uma casa novinha e de tijolos e arrumar um emprego para o filho, ou ainda pensar que os médicos da prefeitura sempre atenderiam de graça as pessoas carentes quando estivessem fora do plantão.
De tão inocente que era, um dia pegou o peru mais gordo, mais vistoso, e foi diretamente na casa do prefeito entregá-lo de presente, dizendo que era apenas uma lembrancinha de uma pessoa pobre porém de bom coração. Disse ainda que era para a esposa do prefeito aprontar um belo almoço, pois o marido merecia. E foi muito festejada, agradecida e tão mimada que acabou prometendo que logo logo voltaria ali para fazer outra surpresa.
E que surpresa prometida foi essa que acabou comprando um carneiro fiado para cumprir sua promessa e novamente presentear o prefeito. E foi uma festa só na casa do homem, com a esposa deste dando até um pedaço de bolo com um copo de água. Maria quase chora de satisfação pelo bolo e a água.
E assim foi distribuindo tudo o que tinha, dando o outro peru ao vice-prefeito, uma galinha a um vereador, outra a outro, não esquecendo duas bem gordas para dois médicos que se diziam muito amigos e sempre à disposição. E nesse passo Maria Pureza ficou sem nada no seu quintal e ainda com a dívida do carneiro para pagar.
O tempo passou e um dia a mãe de Maria Pureza morreu e esta ficou de mãos atadas, sem saber como comprar o caixão para fazer o enterro, pois não tinha centavo algum. A primeira coisa que pensou foi ir até à prefeitura para falar com o próprio prefeito, mas este se negou a recebê-la e mandou avisar que só podia arranjar o caixão dali a uns sete dias, e se ela quisesse esperar tudo bem.
Rumou para a fazenda do vice-prefeito e este afirmou que no momento não podia fazer nada porque o que estava recebendo da prefeitura mal dava pra comprar alimentação especializada para o seu gado, mas se ela quisesse, já que o prefeito prometeu o caixão pra dali a uns sete dias, poderia arrumar uns três pacotes de sal para salgar a velha até o corpo poder ser enterrado.
Bateu todas as portas de gente importante e nada. Os vereadores, já sabendo do caso, se escondiam assim que avistavam Maria. A mulher do prefeito, não sabendo do ocorrido, assim que ela bateu à porta foi logo perguntando onde estava a lembrancinha. Mas quando Maria contou o fato e já ia pedir ajuda, a primeira-dama começou a chorar e a se lamentar dos gastos com os filhos que moravam no exterior, e ficou por isso mesmo.
Ninguém sabe quantos amigos pobres ajudaram Maria Pureza a comprar o caixão de sua mãe. O que se sabe é que um belo dia ela voltou à casa do prefeito, bateu a porta e mandou chamar a primeira-dama para entregar uma lembrancinha. A mulher apareceu feito um raio, toda alegre e sorridente e Maria entregou-lhe uma linda colcha, toda bordada à mão, contendo os seguintes dizeres: "Coração verdadeiro perdoa, mesmo aqueles que chorarão por perdão e não serão perdoados".



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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