SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 22 de abril de 2010

SER SERTÃO: DA ARTE DE NASCER IMPRESTÁVEL – II

SER SERTÃO: DA ARTE DE NASCER IMPRESTÁVEL – II

Rangel Alves da Costa*


Em 1871 Joaquim Catunda editou uma "Biografia do Reverendo Padre Correia", e é de passagens desta que será possível encontrar elementos que permitam conhecer como veio ao mundo, como foi estirpado da infeliz entranha a vil personagem aqui tratada, disse o velho.
Sem acrescentar ou modificar nada, para melhor ou pior, para fazer carniça ainda maior do desditoso, ou qualquer outro aspecto, o que será repassado demonstra a mais pura verdade, se é assim que se possa acreditar, sobre o nascimento e meninice desse desventurado e putrefato ser.
Começa Catunda: "Em princípio deste século (...) nasceu uma criança do sexo masculino. Era uma hora da madrugada. As trevas tornaram-se mais expessas; uivavam os cães; as aves da noite esvoaçadas apavoradas soltando longos e dolorosos pios; ouvia-se um ribombo prolongado e surdo como o de um trovão subterrâneo; o solo foi agitado por síbitas e violentas comoções e um cheiro acre de enxofre derramou-se pela casa da parturiente e circunvizinhança.
Realidade ou superstição, a parteira afirma ter visto entrar na câmara um homem de fisionomia hedionda e repelente, tomar nos braços o recém-nascido, apertá-lo amorosamente ao peito e murmurar-lhe palavras misteriosas em uma língua que não parecia da terra.
Tomada de assombro por tão estranho prodígio, a infeliz parteira persignou-se, invocando o nome da Virgem Celeste. O desconhecido desapareceu subitamente, deixando a criança sob os panos com aquelas feições sinistras e patibulares que ainda hoje, apesar da ação lenta do tempo, fazem dessa pessoa um objeto de asco e de horror".
Enquanto o velho lia o relato biográfico desse ser imprestável, exemplificando com isto outra pessoa existente ali naquela localidade, mais e mais ouvintes chegavam, e todos se comportando tão seriamente para ouvir que parecia mais a leitura de um sermão bíblico. E continuou o velho:
"Foi um ano calamitoso em toda a região: as chuvas faltaram, secaram as águas, os calores ardentes do sertão mataram as sementeiras, a fome e a peste dizimaram a população. O sol, ao desaparecer, deixava os moribundos extorcendo-se nas agonias extremas e, no outro dia, alumiava um montão de cadáveres.
Os bons sertanejos, que sempre gostaram de dar circulação aos escândalos da vida íntima, ocuparam-se muito desses fatos e os interpretaram ao sabor das superstições do tempo. Afirmavam que aquele menino fora gerado numa sexta-feira santa com o concurso de pai putativo e a crença se generalizava de que o Anticristo havia nascido encarnand0-se nele, e todos julgavam próximo o fim do mundo.
O transeunte, ao passar em frente à sua casa, acelerava o passo, murmurando o 'Creio em Deus Padre', e apenas as sombras da noite começavam a estender-se pela cidade, seus habitantes fechavam as portas.
Como quer que fosse, esse menino, ainda sem nome, cujo nascimento assombrava a natureza, e a quem o céu, em sua cólera contra o gênero humano, concedeu vida (...), veio a ser mais tarde o libertino, o devasso, o traidor...".
Nesse passo da leitura, o velho foi interrompido por um dos assistentes: "Olha lá, olha lá quem vai passando lá adiante, acompanhado daquele monte de puxa-sacos, que na verdade não passam de fanáticos daquela coisa ruim em pessoa. Sei não, meu bom velho, mas como é que elegem um traste desse para prefeito, hein?". E o velho respondeu: "Meu filho, que fique aqui pra nós e amanhã pro mundo, mas tem muita coisa nessa história de poder desse homem que foge à nossa compreensão, por ser fruto de uma poderosíssima intercessão das forças do mal. Isso pode ter certeza". E se benzeu; e todos os presentes acompanharam o padre, na busca da proteção divina. E o velho prosseguiu:
"Gerado por graça do Satanás, segundo a crença popular, ele devia, em todo tempo, em todo curso de sua existência, mostrar-se digno de sua infernal origem. Ele devia levar cinco vezes a desonra ao seio da família, prostituir a juventude, macular pela calúnia, a reputação das pessoas conceituadas; pela intriga, acender as paixões das famílias, açular-lhes os ódios, e jubilar depois como um tigre, diante da imensa hecatombe que produziram aqueles ódios; ele devia profanar os altares, perverter as almas confiadas aos seus cuidados; trair os homens e os partidos e representar a figura viva do crápula mais abjeto e torpe e do vício mais orgulhoso e sórdido".
Era deveras impressionante a concentração daquele pequeno grupo de pessoas para ouvir o relato do velho. Ele sabia, contudo, que nem todos aqueles que estavam ali o faziam por desejo de ouvir aquela instigante história, mas sim para saber o que estava se passando e o que conversavam para, em seguida, irem para os fundos da prefeitura contar ao próprio prefeito. Não ganhavam nada com isso, mas o simples fato de serem fofoqueiros oficiais já lhes assomava como se fosse grande coisa. Não sabendo que estavam jogando o jogo do "coisa ruim".


continua...



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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