SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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sábado, 24 de abril de 2010

A MÃO QUE ENXUGAVA OLHOS (Crônica)

A MÃO QUE ENXUGAVA OLHOS

Rangel Alves da Costa*


A mão que enxugava as lágrimas dos que choravam não pertencia aos que estavam pranteando suas dores pela perda, pelo desespero, pela aflição. Não se sabe como, mas a mesma mão estava sempre em todos os lugares onde olhos umedecidos começassem a verter suas desesperanças.
Ninguém jamais havia percebido isso até que um dia uma criancinha de uma família muito pobre perguntou à mãe, que estivera chorando instantes atrás: "Mamãe, por que as pessoas choram muito e de repente os olhos ficam apenas entristecidos e elas param de chorar, será que vem uma mão escondida e manda a tristeza ir embora e começa a enxugar as lágrimas?".
E a mãe, totalmente perplexa com a inesperada pergunta e com a certeza de que não saberia responder corretamente, apenas disse: "As pessoas tem lencinhos guardados bem dentro do coração, e quando precisam elas pedem que eles enxuguem os olhos. Deve ser isso, minha filha...". "Pois eu já acho outra coisa", disse a menina, saindo em seguida.
Rio de Janeiro, abril de 2010. Chuvas intensas, fruto de tempestades de magnitude dificilmente vistas no lugar, deixou milhares de desabrigados, ruas completamente alagadas e moradias pobres completamente destruídas por deslizamentos em morros. Mais de duas centenas de pessoas perderam suas vidas, e as inúmeras outras que ficaram vivas foram vitimadas também pela dor da perda. Quantos olhos se viram também em tempestades e quantas lágrimas não foram derramadas como em outra enxurrada? Em todos os lugares uma única mão enxugou a nascente de todos aqueles olhos e fez aqueles sobreviventes enxergarem melhor a vida a ser reconstruída.
Haiti, janeiro de 2010. Um forte terremoto devastou diversas regiões do país, derrubando casas e prédios públicos e soterrando nos escombros milhares de vítimas; os corpos dos mortos foram amontoados pelas ruas esburacadas e pessoas vagavam doentes, famintas e sedentas, pelos ermos sem saber o que fazer, apenas chorando unissonamente a dor de todos. Até hoje as lágrimas ainda não cessaram completamente, mas uma mão invisível cuidou em dar aos olhos de cada um a força que tanto precisavam para enxergar o futuro.
Arapiraca, Alagoas, abril de 2010. Padres da Diocese afirmaram ter abusado de coroinhas durante muitos anos, com práticas também recentes e que envolviam verdadeiros festins, orgias, uso de bebidas e práticas sadomasoquistas. Um padre já idoso chegou a ser preso após depoimento à CPI da pedofilia, confessando tudo e pedindo perdão aos fieis pelos reiterados pecados cometidos. As vítimas e outras pessoas restaram indignadas e reclamaram justiça, porém ninguém chorou. Mas a Igreja sim, e os olhos derramaram as lágrimas envergonhadas daqueles que não podem chorar porque demonstraram não possuir nenhum senso de respeito próprio nem à igreja que os acolhia. A Igreja chorou, e uma mão que vive em seu interior procura agora enxugar as lágrimas do templo e as próprias lágrimas.
Sertão nordestino, a vida inteira. Em épocas de prolongadas estiagens, quando a seca começa a traduzir e mostrar o lado mais cruel da miséria absoluta, da falta de qualquer perspectiva e da desesperança que toma conta dos mais novos aos mais velhos, as lágrimas ressequidas pelo sol escaldante e pelo acostumar no sofrer, são transferidas para outros olhos, pertencentes a todos aqueles que humanamente compreendem a situação e, ao lado da lágrima, ainda oferecem um pacote de fubá de milho. Tais lágrimas, enxugadas por mão amiga, dão lugar ao sorriso, que dá forças para ajudar muito mais e transmitir aos carentes e necessitados um pouco de esperança e fé por dias melhores.
Assim que aquela meninha do começo da história retornou, sua mãe lhe chamou e perguntou: "Minha filha, o que você quis dizer mesmo quando afirmou que achava outra coisa, quando a gente falava sobre uma mão que sempre enxuga os nossos olhos e a gente nunca é capaz de enxergar ela?".
"Mamãe, se sempre estou com Deus me segurando com uma de suas mãos, a outra deve ser a que enxuga os nossos olhos", falou a menina. E a mãe lacrimejou por um breve instante...



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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