SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 7 de abril de 2010

PARA MORRER EM SEGUIDA (Crônica)

PARA MORRER EM SEGUIDA

Rangel Alves da Costa*


A primeira coisa que fez ao levantar foi desdenhar da graça concedida pelo novo dia e não orou pedindo proteção a Deus nem ao seu anjo da guarda, não abriu a janela para ver o sol, não apreciou as belezas da manhã, não alimentou os passarinhos, não regou o pequeno jardim, não foi passear pela praça. Parecia sempre de mal com a vida, e tudo para morrer em seguida.
Não olhou para a esposa, não respondeu à benção dos filhos, não perguntou como estavam passando, não sentou à mesa para o café, não falou na promoção no emprego e muito menos do aumento no salário que havia conquistado. Não se despediu de ninguém, não falou com o vizinho que lhe deu bom dia e nem ajudou a levantar a criança que tombou com a bicicleta. Ao sair, quase derruba o portão e atropela uma pessoa que ia passando. Tudo isso sem saber que morreria em seguida.
Só pensava no emprego e no dinheiro que poderia acumular com ele, depositando quase tudo na poupança e não permitindo sequer um mínimo de conforto para a família. Não tirava férias - que era pra não viajar com a família e gastar -, não renovava os móveis da casa, não dava uma nova pintura ao menos nas partes externas, não deixava que a esposa falasse em comprar nada além daquilo que necessariamente precisavam. Segundo ele, precisavam somente comer os restos que tivessem, ajeitando aqui e ali, e pronto. Mas tudo isso sem saber que morreria em seguida.
Quando as festas de fim de ano se aproximavam era um deus-nos-acuda. E logo vinha com a velha conversa de que nunca tinha estado numa situação tão difícil como naquele ano, e por isso mesmo não teriam presentes, nem árvore de natal, nem lembrancinhas para os parentes e amigos, nem peru, nem panetone, nem ceia alguma. Se a esposa e os filhos quisessem se banquetear que fossem para a casa dos familiares. Fizessem o que quisessem, mas deixassem ele ali, já que não tinha nem uma roupa digna para vestir. Tudo isso era ele mesmo que dizia. E sem saber que morreria em seguida.
Quando assistia televisão e via pessoas felizes, viajando, passeando, bonitas, bem vestidas e consumindo o que pudessem, logo dizia que pessoas como aquelas não faziam nenhuma falta na sociedade, vez que esta precisava mesmo era de pessoas que vivessem somente para o trabalho, para produzir riquezas e não para viver na riqueza.
Do mesmo modo, se visse cenas de pobreza pelo mundo, com pessoas esqueléticas e crianças comendo barro e bebendo lama, logo dizia que tudo aquilo só tinha um culpado, que eram os próprios miseráveis, já que preferiam viver naquela situação a trabalhar no pesado. Que fizessem como ele, que nunca tinha tido nem infância nem juventude, mas somente trabalho, trabalho e trabalho. E falando e pensando tanta besteira sem saber que iria morrer em seguida.
Não tinha amigos, evitava falar com os colegas de trabalho, não dava um bom dia ou boa tarde a quem quer que fosse, nem perguntava pela saúde ou pela família de ninguém. Dizia que não tinha mais raízes familiares, nem que lembrava mais onde havia nascido. Fazia de conta que tudo era estranho, desconhecido, que nunca tinha visto ou ouvido falar de nada. Contudo, se soubesse que o seu chefe se aproximava se preparava todo para sorrir, abrir portas, segurar o paletó, afastar a cadeira para ele sentar. Trazia cafezinho e água e dizia que estava à sua disposição para tudo que quisesse. "Como vai a sua linda família?", perguntava sempre. E nem se interrogava se morreria um dia.
Um dia o chefe deu justa causa por adulação, mandou ele embora e negou-se a fazer uma carta de recomendações. Do nada, se viu desempregado. Como nunca tinha vivido, não sabia quantos anos tinha nem se conseguiria outra colocação no mercado. Pensou que poderia contar com a ajuda de amigos e lembrou que não tinha tido tempo de fazer amigos. Não podia ficar sem emprego porque a verba rescisória que recebeu iria toda para a poupança. Se faltasse comida em casa, ao menos tinha a desculpa de ter ficado desempregado. De repente arranjou um novo emprego. Mas não sabia que morreria em seguida ou se já havia morrido.
Quando o novo patrão lhe chamou para conversar, chegou todo importante e foi logo sendo perguntado: "Me conhece?". "Não", ele respondeu. "Pois é, você teve todo tempo do mundo para me conhecer e jamais pensou na minha existência. Para muitos, a vida basta em si mesma. Mas agora saiba que não é assim. Concedi a vida foi para ser vivida e não para ser esquecida. O que fez foi acumular pecados, e mesmo assim estou lhe dando uma chance aqui no céu. Mas é preciso trabalhar muito para merecer estar aqui, senão mando você para outro departamento, onde ninguém fala com ninguém porque não pode falar, só gemer, gritar".



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: