SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 3 de abril de 2010

SONATA PARA PIANO E SOLIDÃO (Crônica)

SONATA PARA PIANO E SOLIDÃO

Rangel Alves da Costa*


Chovia lá fora. Executou os últimos acordes no piano sob a tênue luz da sala vazia. Ainda sentada na velha cadeira se pôs a mirar a partitura com as tristes melodias de sempre e sem querer já não estava ali.
Ainda ontem o amor que era tanto se fez como uma estação que passa: se foi sem apagar de vez a alegria das flores sorrindo ou das folhas amarelecidas caindo. Nesse percurso que é a vida, de destruições e renascimentos, o amor que era tanto ontem hoje não sabe o real significado de sua extensão.
Menina ainda, sonhou cedo demais em ser grande para também grandemente amar. E amou. Enamorou-se do príncipe e seu castelo, se fez cortesã da esperança do amor correspondido e assim, por muito tempo, viveu essa paixão marcada pela cumplicidade entre os dois, até que o príncipe pensou que já rei e foi reinar no coração de outras súditas.
Ainda solteira, grávida e abandonada por quem entregara a juventude e a mocidade, percebeu que não mais vivia no principado dos sonhos, mas sim na terra árida da desilusão e da árdua luta pela sobrevivência. Dois destinos em suas mãos, o próprio e o do filho, que nasceu homem e ganhou o nome de um deus da mitologia nórdica: Freyr, deus da fertilidade da terra, controlador do brilho do sol e da precipitação das chuvas.
Na sua dignidade, não se deixou levar pelos prazeres mundanos nem pela moeda fácil que corrompe a carne e o espírito. Na sua honestidade, não se deixou submeter ou subjugar somente porque dizem que a necessidade é a mãe da perdição. Pelo contrário, ouviu o oráculo do seu coração e foi para bem longe com seu filho, onde a natureza em plenitude lhe permitia apreciar os lírios dos campos, sentir a voragem dos ventos soprar nos girassóis, plantar centeio, separar o joio do trigo e colher a paz que tanto necessitava.
Freyr foi crescendo ao seu lado, recebendo todos os cuidados que uma mãe zelosa pode dar. Por mais que ali simbolizasse toda a tranqüilidade e segurança que o seu filho precisava na sua formação de homem, sabia que o seu futuro profissional dependia de lugares onde a aprendizagem fosse mais avançada. E assim, de coração sangrando, deixou para trás esse porto seguro e foi arriscar a vida na cidade grande.
Como viver nesse novo e disforme mundo, de pessoas vizinhas que não se conhecem e amigos que se destratam pela frágil amizade, se tinha o coração puro e ainda acreditava nas pessoas? Como sustentar essa família de dois se o que estava acostumada a fazer – plantar, regar, cuidar, colher – talvez não tivesse nenhuma serventia nos espaços das máquinas barulhentas e de pessoas que só pensam em mandar e exigir? Como reencontrar a dignidade que traz felicidade através do trabalho?
Começou a produzir velas aromáticas, sabonetes de ervas e pequenos talismãs odoríferos representando duendes e gnomos, tudo artesanalmente, nos fundos do quartinho onde moravam. Não demorou muito tempo e já estava com um pequeno ponto de venda desses produtos. Os estudos do filho e a sobrevivência dos dois por enquanto estavam sendo garantidos.
Até que teve a oportunidade de abrir um comércio maior, mas achou melhor não colocar em aventura as economias que já vinha guardando. Nunca se sabe o dia de amanhã, sempre dizia ao filho. Este se formou e se tornou rapidamente um profissional muito disputado. Começou a ganhar muito dinheiro e logo resolveu morar sozinho.
Ela estava morando sozinha, vivendo confortavelmente numa casa muito grande, principalmente porque não tinha ninguém ao seu lado. O filho passou um longo tempo sem dar notícias, e quando ela procurou saber do seu paradeiro apenas soube que ele já havia casado e morava muito distante. Talvez ela já tivesse um neto e não sabia. Só sabia que estava sozinha, esquecida agora pelo filho. Agora não tinha mais ninguém, nem o amor de um dia, nem o filho de ontem e talvez o netinho de hoje. Só tinha riquezas materiais que não significavam mais nada, a solidão e o seu piano.
Tocou Valsa das Flores, uma belíssima inspiração de Tchaikovsky ao piano, e depois levantou e se pôs a dançar, a valsar, a rodar sozinha pelo salão. A música estava em sua mente, nunca saía de sua mente, as lágrimas umedeciam os olhos levemente fechados e rolavam pela face. Sob a tênue luz da sala vazia e triste, com a chuva caindo lá fora, ela valsava em passos largos e cada vez mais. Que bela valsa, que bela sonata, que bela dança de solidão.



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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