SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 27 de abril de 2010

SER SERTÃO: DA ARTE DE SOBREVIVER – IV

SER SERTÃO: DA ARTE DE SOBREVIVER – IV

Rangel Alves da Costa*


Em meio à raça titânica sertaneja, sempre haverá uma parcela da população que realmente não merece ser chamada de viventes do sol e da luta. Pelo contrário, não passa de verdadeira classe de vermes que se prolifera nas portas dos políticos, nas cozinhas dos endinheirados, nas praças colhendo mentiras para repassá-las adiante pelo simples prazer de ser chamada de imprestável, nojenta e falsa.
Pessoas existem que não estão nem aí para o fato de serem usados para fins politiqueiros. E o contexto até que é propício a tais práticas. A miséria, então, torna-se o ambiente mais propício para se tirar dividendos políticos. Alguns não precisam nem receber promessas e ficam logo de joelhos, lambendo os sapatos do seu algoz; outros, vendendo o resto da vergonha por um preço mais caro, aceitam qualquer esmola, principalmente uma cesta de alimentos. Esta, por sinal, mesmo sendo parte de um programa assistencialista governamental, se constitui no maior cabo eleitoral de todo o sertão. Assim, os políticos governistas retêm os alimentos como se fossem deles e daí em diante vão praticando a velha e conhecida política da troca de favores.
Sertanejo digno, honesto, valente e trabalhador deveria servir de exemplo para o sertanejo cabra safado. Ao menos deveria ser assim. É bom lembrar que um poeta sertanejo já disse que uma esmola para um homem que é são ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão. Viver com dignidade na base do trabalho, com o emprego mesmo de curta duração, mas que garante com altivez o pão de cada dia.
Antigamente, nas épocas que batiam as estiagens brabas, de secar couro, para não se submeter às ditas e vergonhosas "caridades", não eram poucos os sertanejos que vendiam seus préstimos, seus serviços ao coronéis, aos latifundiários, poderosos do lugar. Proteger, amedrontar, dar sumiço, matar, era sempre garantia de algum lucro. E nem se poderia chamar isso de bandidagem, pois no sertão isso era uma prática de honra e não de mero enveredamento pelo mundo do crime.
No passado, ocasionalmente, nos ermos sertanejos de disputas e mais disputas pela terra e pela política, alguns trabalhadores, vendo seus normais afazeres ameaçados pelas estiagens, deixavam temporariamente suas atividades e, de armas na cintura e sinais de proteção, passavam a prestar serviços a proeminentes figuras do lugar, seguindo fielmente tudo aquilo que fosse ordenado.
"Os homens do homem", como eram chamados para designar uma outra feição dos capangas e jagunços, serviam para proteger o patrão, sua família e propriedades. Os serviços mais sujos, como tocaiar e matar, eram feitos, aí sim, pelos jagunços. Estes eram elementos que integravam as forças ou corporações particulares dos fazendeiros e chefes políticos e destinavam-se, além da proteção contra tudo e todos, à execução de crimes encomendados, em tocaias e emboscadas, participando ainda, de armas sempre em punho, nas lutas entre os clãs políticos e familiares.
Nos tempos de paz, quando o sertão foi livrando-se das sombras cruéis do mandonismo, as armas foram depostas e em seu lugar retomou com dignidade todo um aparato de foices, pás, enxadas, enxadecos e machados. Nas frentes de trabalho, serviços de melhoria ou abertura de estradas e construções de barragens e açudes, quase sempre patrocinados pelo governo federal, os sertanejos, ou melhor, aqueles escolhidos pelo chefe político local, passaram a ter uma ocupação certa num tempo difícil, pois a seca é o que justificava aquele trabalho.
Quinzenalmente os flagelados, assim chamados os trabalhadores das frentes de trabalho ou "magnú" (magro e nu), faziam longas filas no próprio local de batalha para receber seus trocados. Dinheiro mirradinho, quase nada, mas não havia felicidade maior para aqueles trabalhadores desamparados pelas forças naturais, que viam naquela pequena recompensa a força que tanta necessitavam para continuarem lutando para sobreviver. Muitas vezes, junto com o pagamento recebiam uma cesta de poucos alimentos, o que acontecia com mais regularidade para as famílias que não tinham ninguém incluído nas frentes de serviço.
Com pouquíssimas modificações, as coisas continuam como antes. As secas continuam cada vez mais castigando o povo e as promessas renovam-se a cada dia. Pelo tempo que se promete, que infinitamente se promete, se cada governante fizesse apenas um tiquinho, um bocadinho apenas do que diz, tudo já estaria resolvido. Logicamente que as secas, que são independentes do desejo humano, continuariam com seus ciclos naturais, porém outros meios, através dos avanços tecnológicos, fariam com que o sertanejo nem sentisse tanto suas afetações, suas conseqüências danosas e, de uma forma totalmente inversa do que se tem hoje, poderia até mesmo tirar proveito dos períodos de estiagens.


continua...



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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