SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 18 de abril de 2010

SER SERTÃO: DA ARTE DE NASCER – I

SER SERTÃO: DA ARTE DE NASCER – I

Rangel Alves da Costa*


O sol nascente incidia sobre as nuvens do sertão, dando-lhe uma coloração avermelhada. Era o arrebol sertanejo. Poucos minutos depois as nuvens espalhavam-se e sumiam, e o clarão escaldante avançava impiedosamente sobre o cenário agreste. Mais um dia nascia. Todos aqueles que levantavam, com sua tez de cicatrizes, provavelmente deitarão mais tristes. Mas não importava, se mais um dia nascia era preciso simplesmente viver. Sonhar muitas vezes é sonho.
De uma das inúmeras portas abertas saiu um velho, pegou um litro de leite com um menino e ficou mirando o horizonte. Nada de novo, refletiu. Nos arredores, crianças corriam com olhos ainda amassados de sono: mulheres varriam e vizinhas já consumiam e espalhavam fofocas saídas do forno; homens saíam com seus apetrechos e ferramentas de trabalho, outros simplesmente ficavam por ali mesmo ciscando, remexendo numa coisa e noutra, sem ter um serviço lucrativo que fazer. Nada de novo, nem no firmamento nem debaixo do sol.
O velho era o mais antigo morador daquela ruazinha. Todos os que chegaram depois dele nada sabiam sobre o seu passado, se tinha familiares ali ou em outros lugares; nem o seu nome sabiam, era simplesmente o velho. Morava sozinho, mas pouco tempo ficava na sua acanhada vivenda. Durante todo o dia afastava-se para o centro da cidade, o que, segundo ele, servia para aproximar-se mais da realidade e das mudanças pouco ocorridas no sertão. Nos bancos das praças, nas sombras das árvores, nos botequins tomando sua casca de pau, eram os locais costumeiros, onde ele poderia sempre ser encontrado.
A idade do velho tornara-se impossível de adivinhar. Não sei quantos e tantos anos, alguém poderia dizer. E isto muito contribuiu para a história que corria entre todos que ele era o maior sábio do sertão. Ele sabia que tinha lá suas qualidades, seus conhecimentos, mas tudo fruto de uma longa experiência acumulada na palmatória do mundo sertanejo, bem como o prazer em adquirir a cada dia novas informações sobre o mundo lá fora. Fatos históricos, coisas, pessoas, sobre tudo ele sabia um pouco e tinha uma explicação inteligente, muitas vezes falando de forma bem humorada e brincalhona e outras vezes numa seriedade e tristeza de dá dó. Todos o procuravam; todos queriam ouvir suas palavras de fácil entendimento. E de tanto ouvi-lo, muitos guardaram suas lições, como se verá daqui em diante.
Com o vento soprando e espalhando sua cabeleira de pura branquidão, as palavras saíam de sua boca como a absorver a todos que o ouvia. Em tudo que dizia, no ouvinte a meditação, o acolhimento, a ira ou o sorriso. E o velho gostava de conversar, palear, como sempre dizia. E começava a contar seus "causos" e histórias.
Nascer no sertão sempre foi uma dádiva divina. Mas Deus não põe ninguém no mundo sem lhe dar algum tipo de provação ou privação. Muitos nascem em berço de mandacaru e xiquexique, por isso mesmo não tem medo de caminhar por estradas de espinhos. Esses são verdadeiramente sertanejos, prontos para desbravar veredas e vencer tocaias de sangue. Outros nascem no conforta da cama macia, e passam pela vida com calos feitos somente pelos sapatos da moda. Esses também são sertanejos, mas de um sertão de hoje, onde, muitas vezes, a privação maior é a da vergonha. Dizia o velho.
O mundo moderno apagou da cabeça do povo muitas palavras essenciais. Respeito, educação, coragem e vergonha parecem coisas estrambólicas, do outro mundo. Pais, existiam pais. O menino na capoeira da casa e o pai olhando; nos arredores mais distantes e o pai de olho; com certas amizades, nem pensar, nem ali nem em outro lugar. Se hoje não é mais assim e os filhos se amoitam onde querem, a culpa é de quem não sabe criar. Amanhã, quando o pior faz uma visita, os pais são os últimos que ficam sabendo dos estragos. Mas de certa forma já sabiam. Também, só se leva o bem do berço se tiver quem cuide desse berço, que são os pais. E mais tarde, para estes pais que não tiveram pais, tudo de ruim que os filhos fizerem nunca vai ser demais.
Para ter filhos não é preciso mais nem namorar. Pra que namorar se, como dizem, a moda é ficar, e dar uma e depois nem lembrar do rosto do outro? Tão bonzinho isso, até que pega na veia e a bomba explode e começa o deus-nos-acuda. Quando não tem jeito mesmo e a garota arruma um besta de plantão que assuma, a única certeza que se tem é que mais uma criança vai nascer e caminhar perante a irresponsabilidade dos ditos pais.
Fazer filho, pra não dizer outra coisa, é coisa séria, dizia o velho. Hoje em dia o descaramento é tanto que planejam para os filhos nascerem de cinco a seis meses antes de cada eleição municipal. Calendário espertíssimo, de gente cabreira, atilada, que conta nos dedos o tempo de dar o bote. Quando a mulher embucha, o pai fica um tempão matutando sobre o nome mais bonito para colocar na criança. O marido sentencia logo: "Mulé, seja menino ou menina, o nome tem que ser ou "ingrês" ou de artista de novela da "grobo". Quanto ao padim, num se preocupe não que vai ser um político, um candidato nessa eleição, e que seja pra ganhar".
Antigamente, nem de longe se ouvia falar nessas coisas. João, Maria, Antonio, Josefa, Pedro, Francisco, Lurdes, Sebastião, José, Severino, Joana, Marina, tudo nome simples, bonito, sem enfeite ou frescura, nome de verdade, de respeito mesmo. Nenhum pai queria saber de artista, se o artista era ele mesmo, vivendo na corda bamba, fazendo acrobacias numa imensidão de palco de sol e sofrimento para sobreviver.


continua...



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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