SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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quinta-feira, 9 de maio de 2019

DOIS VERSOS E UM TIRO NO CORAÇÃO



*Rangel Alves da Costa


Antes mesmo do anoitecer e a sala já estava na semiescuridão. Um cheiro forte de incenso pelo ar. Uma garrafa de vinho vazia e outra de uísque pela metade.
A escuridão aumentando, mas bastava somente apertar o interruptor e chamar a luz. Preferiu acender uma velha lamparina, colocá-la num canto da mesa, com a intenção de escrever alguns versos.
Tal intenção era como tempo nublado que nunca chove. Mais de trinta páginas de aderno já rasgadas e sem que uma só estrofe fosse completada. A cada folha rasgada um gole, a ira, a aflição.
Quanto mais a noite avançava mais ele tentava expressar sua agonia através de versos. Sim, queria falar de amor, mas não do amor amoroso, de paixão compartilhada, mas de um amor perverso e devastador.
Sim, um amor perverso e devastador. Amor punhal afiado, amor brasa chamejante, amor espinho pontudo no pé e na alma, amor tão desejado como amor e transformado em desilusão e sofrimento.
Mas como escrever sobre um amor assim, principalmente em versos, em poesia? Indagava-se enquanto rasgava retratos, bilhetes, todo o que estivesse por perto e fizesse recordar a causa de toda aquela angústia.
A noite rompeu a madrugada, a aurora chegou, e nenhuma poesia inteira saiu. Ao amanhecer, com os sopros entrando pela janela, dois versos se sobressaíam, como se desejassem ser lidos.

E que doçura tornada em fel
um purgatório no que era céu
e eu, um ser de Dante ao dissabor
na fogueira viva por um amor
e após beber do fogo que a tudo arde
ainda ter que queimar na chama da saudade.

E logo adiante outro verso, em papel amassado e quase ilegível, mas igualmente clamando para ser lido:

No cume do penhasco onde eu estava
mirando adiante o desejo que brotava
eis que o abutre avançou sobre mim
e dizendo que aquele era o meu fim
pela ilusão de um amor impossível demais
e do cume lançado para o nunca mais.

E ele lançado ao chão, um copo espatifado adiante, nos olhos abertos uma profunda tristeza. De sua boca um fio de sangue já sem escorrer. Uma arma deitada na mão e um tiro no coração.



Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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