SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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segunda-feira, 6 de maio de 2019

SOBRE A MORTE E O VELÓRIO DE ZÉ DE JULIÃO



*Rangel Alves da Costa


Aquele dia 19 de fevereiro de 1961 amanheceu estranhamente nublado. Não por nuvens prenunciando chuvas nem por que o sol estivesse encoberto na sua luz, e sim por um clima estranhamente sombrio e pesado recaindo sobre aqueles sertões de Poço Redondo. Infelizmente, aquela atmosfera pesarosa que sempre antecede os augúrios indesejados.
Mais tarde os fatos confirmariam as motivações da feição tão sombria encobrindo os quadrantes da cidade. Com efeito, já passava do meio-dia quando os assombros e os espantos começaram a tomar conta de tudo. “Zé de Julião foi morto e o seu corpo está em cima de umas pedras nos arredores da Bastiana!”. Eis o anuncio dado para comoção e tristeza da povoação.
Imediatamente alguns amigos de José Francisco do Nascimento, o Zé de Julião (ou ainda Cajazeiras no bando de Lampião), apressaram-se para chegar ao local e, assim, poderem confirmar a veracidade da notícia repassada de canto a outro. Seguiram pela Estrada de Curralinho, adentraram na Lagoa das Areias, até chegarem às pedras onde o corpo jazia ao abrasamento do escaldante sol sertanejo.
Não havia sido traído e morto naquele mesmo local. Os assassinos que o acompanhavam na feição de leais amigos, após a traição e os disparos pelas costas nas proximidades da Queimada Grande, logo cuidaram de levar o corpo para aquelas pedras mais afastadas, de modo que o cenário e as circunstâncias do crime ficassem desconhecidos para posterior investigação. Não conseguiram esconder a verdade, contudo.  
A contextualização da morte, as reais motivações e a mando de quem o crime foi praticado, fazem parte de outra história dentro da própria história. Contudo, não há dúvidas que a condução do corpo morto a local diferente daquele da ocorrência, configurou-se em clara tentativa de encobrimento dos fatos. E assim aconteceu. O corpo de Zé de Julião foi levado e deixado em cima das pedras da Bastiana.
Apressados, aflitos perante a notícia surgida, eis que os amigos avançam sobre os carrascais e os catingueiramentos, até avistarem as pedras onde o corpo morto já queimava ao sol. O cadáver, em grande parte já transfigurado pela perda de sangue e pelo arroxeamento da pele, estava quase totalmente abrasado. Onde o corpo entrou em contato com a pedra quente, logo depois a pele começou a desprender como carne assada que é repuxada. Uma cena das mais terríveis.
Atônitos, desesperados, aqueles sertanejos resolveram colocar seu amigo morto em panos e esteiras e conduzi-lo imediatamente até a cidade. O sol já se punha quando a comitiva deixou o local e retomou a estrada de Curralinho, em direção à cidade. E que cortejo mais triste e pesaroso. Os horizontes e a povoação já escureciam quando o corpo conduzido adentrou naquelas ruas de chão batido que Zé de Julião tanto amava e que tanto lutou e sonhou para ser prefeito. Um desejo imenso que acabou lhe custando a vida.
A notícia da chegada do corpo foi acompanhada de gritos silenciados pelo medo. Havia medo de chorar, de lamentar, de gritar, de pedir explicações, de querer saber qualquer coisa sobre o acontecido. Olhos escondidos pelas frestas das portas e janelas, passos lentos seguindo como se temessem despertar o pior. A desconfiança e o receio rondavam por todo lugar. Mas alguns amigos nada temeram.
Assim chegado, o corpo foi estendido na calçada da prefeitura, onde hoje funciona a Câmara de Vereadores. Mas não por acaso ou por negligência daqueles que o transportaram, e sim como uma homenagem última àquele que por duas vezes teve sua eleição para prefeito usurpada pelo poder político local e estadual. Na calçada estendido, já debaixo da escuridão da cidade, ali jazia Zé de Julião, o grande sertanejo, mas tornado apenas em vítima do ódio, da perseguição e da violência.
Não demorou muito e o cadáver foi conduzido até a casa de sua irmã Maria José, mais conhecida como Maria José de Anízio, na praça da igreja (hoje Praça da Matriz de Poço Redondo), já em direção à curva da Rua de Baixo. O corpo continuou estendido em esteira até que seus amigos Cândido Luís de Sá, o Candinho, juntamente com Manoel André e outros, providenciassem a feitura de um caixão.
Iniciado o estranho e inusitado velório, mesmo que a maioria da população local tivesse vontade de ir até a casa de Maria José dar o último adeus ao amigo, apenas alguns, encorajados e destemidos, não arredaram o pé do local. Abdias, Antônio Rosendo, Mané Cante e outros vaqueiros da Rua de Baixo, todos velaram o amigo até a hora da partida e permitiram um digno cortejo até o cemitério local. Em cova simples, comum demais para um sertanejo tão valoroso, foi sepultado Zé de Julião.
Não foi assim, mas na dignidade de seu epitáfio deveria estar escrito: “Aqui jaz a nobreza de um homem em sua incansável luta pelo que mais amou: Poço Redondo!”.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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