*Rangel Alves da Costa
Aquele dia 19 de fevereiro de 1961 amanheceu
estranhamente nublado. Não por nuvens prenunciando chuvas nem por que o sol
estivesse encoberto na sua luz, e sim por um clima estranhamente sombrio e
pesado recaindo sobre aqueles sertões de Poço Redondo. Infelizmente, aquela atmosfera
pesarosa que sempre antecede os augúrios indesejados.
Mais tarde os fatos confirmariam as
motivações da feição tão sombria encobrindo os quadrantes da cidade. Com
efeito, já passava do meio-dia quando os assombros e os espantos começaram a
tomar conta de tudo. “Zé de Julião foi morto e o seu corpo está em cima de umas
pedras nos arredores da Bastiana!”. Eis o anuncio dado para comoção e tristeza
da povoação.
Imediatamente alguns amigos de José Francisco
do Nascimento, o Zé de Julião (ou ainda Cajazeiras no bando de Lampião),
apressaram-se para chegar ao local e, assim, poderem confirmar a veracidade da
notícia repassada de canto a outro. Seguiram pela Estrada de Curralinho,
adentraram na Lagoa das Areias, até chegarem às pedras onde o corpo jazia ao
abrasamento do escaldante sol sertanejo.
Não havia sido traído e morto naquele mesmo
local. Os assassinos que o acompanhavam na feição de leais amigos, após a
traição e os disparos pelas costas nas proximidades da Queimada Grande, logo
cuidaram de levar o corpo para aquelas pedras mais afastadas, de modo que o
cenário e as circunstâncias do crime ficassem desconhecidos para posterior
investigação. Não conseguiram esconder a verdade, contudo.
A contextualização da morte, as reais
motivações e a mando de quem o crime foi praticado, fazem parte de outra
história dentro da própria história. Contudo, não há dúvidas que a condução do
corpo morto a local diferente daquele da ocorrência, configurou-se em clara
tentativa de encobrimento dos fatos. E assim aconteceu. O corpo de Zé de Julião
foi levado e deixado em cima das pedras da Bastiana.
Apressados, aflitos perante a notícia
surgida, eis que os amigos avançam sobre os carrascais e os catingueiramentos,
até avistarem as pedras onde o corpo morto já queimava ao sol. O cadáver, em
grande parte já transfigurado pela perda de sangue e pelo arroxeamento da pele,
estava quase totalmente abrasado. Onde o corpo entrou em contato com a pedra
quente, logo depois a pele começou a desprender como carne assada que é
repuxada. Uma cena das mais terríveis.
Atônitos, desesperados, aqueles sertanejos
resolveram colocar seu amigo morto em panos e esteiras e conduzi-lo
imediatamente até a cidade. O sol já se punha quando a comitiva deixou o local
e retomou a estrada de Curralinho, em direção à cidade. E que cortejo mais
triste e pesaroso. Os horizontes e a povoação já escureciam quando o corpo
conduzido adentrou naquelas ruas de chão batido que Zé de Julião tanto amava e
que tanto lutou e sonhou para ser prefeito. Um desejo imenso que acabou lhe
custando a vida.
A notícia da chegada do corpo foi acompanhada
de gritos silenciados pelo medo. Havia medo de chorar, de lamentar, de gritar,
de pedir explicações, de querer saber qualquer coisa sobre o acontecido. Olhos
escondidos pelas frestas das portas e janelas, passos lentos seguindo como se
temessem despertar o pior. A desconfiança e o receio rondavam por todo lugar.
Mas alguns amigos nada temeram.
Assim chegado, o corpo foi estendido na
calçada da prefeitura, onde hoje funciona a Câmara de Vereadores. Mas não por
acaso ou por negligência daqueles que o transportaram, e sim como uma homenagem
última àquele que por duas vezes teve sua eleição para prefeito usurpada pelo
poder político local e estadual. Na calçada estendido, já debaixo da escuridão
da cidade, ali jazia Zé de Julião, o grande sertanejo, mas tornado apenas em
vítima do ódio, da perseguição e da violência.
Não demorou muito e o cadáver foi conduzido
até a casa de sua irmã Maria José, mais conhecida como Maria José de Anízio, na
praça da igreja (hoje Praça da Matriz de Poço Redondo), já em direção à curva
da Rua de Baixo. O corpo continuou estendido em esteira até que seus amigos
Cândido Luís de Sá, o Candinho, juntamente com Manoel André e outros,
providenciassem a feitura de um caixão.
Iniciado o estranho e inusitado velório,
mesmo que a maioria da população local tivesse vontade de ir até a casa de
Maria José dar o último adeus ao amigo, apenas alguns, encorajados e
destemidos, não arredaram o pé do local. Abdias, Antônio Rosendo, Mané Cante e
outros vaqueiros da Rua de Baixo, todos velaram o amigo até a hora da partida e
permitiram um digno cortejo até o cemitério local. Em cova simples, comum
demais para um sertanejo tão valoroso, foi sepultado Zé de Julião.
Não foi assim, mas na dignidade de seu
epitáfio deveria estar escrito: “Aqui jaz a nobreza de um homem em sua
incansável luta pelo que mais amou: Poço Redondo!”.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário