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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 3 de abril de 2010

O MENINO DO LÁPIS SEM PONTA (Crônica)

O MENINO DO LÁPIS SEM PONTA

Rangel Alves da Costa*


Nunca mais vi Zezinho, nem sei se ele já é doutor de anel e tudo ou se ainda vive procurando escrever seu destino. Mas como poderia escrever, se o lápis de Zezinho nunca tinha ponta nem ele tinha outro lápis? Era muito pobre o menino, desses que só tem um lápis e pronto. E sem ponta.
Quando acabar esse lápis escreva na areia, como fazia Padre Marcelo, dizia a analfabeta professora. Uma vez até discutiu com outra professora, que lhe jogou na cara que quem escrevia poemas na praia para a Virgem Maria era o Padre Fábio de Melo. Foi preciso que a empozada e florida diretora contornasse a situação, afirmando que tinha certeza que o Poema a Virgem foi escrito por um padre muito antigo chamado Frei Caneca. Coitado de Anchieta! E os meninos tinham que aprender assim mesmo e escreviam esses nomes nos caderninhos, menos Zezinho, que não tinha ponta no lápis.
Zezinho, lembro bem, era uma graça de menino, um típico sertanejinho de cor tingida pelo sol, de cabelos esvoaçantes, sorriso querendo passear e um olhar de uma olhar tão longe que parecia não querer mais voltar. Era sonhador o menino, de ter qualquer coisa a mais do que tinha e ser o moleque mais feliz do mundo.
Não tinha nada o menino, e qualquer coisa lhe bastava para essa imensa felicidade. Mas também era rico o menino, com sua fazenda no canto do quintal e dois bois bonitos de ponta de vaca. Dinheiro não faltava no seu bolso, e eram milhões em papel de carteira de cigarro, dobradinho e guardado no bolso da bermuda de cinturão de tira de pano. Tinha um carro-pipa, que era uma lata vazia de olho em cima de quatro rodinhas de madeira.
Não dormiu por três dias seguidos quando soube que ia estudar. A felicidade era tanta que parecia estar com febre. Sua viúva mãe pensou que tinha adoecido e chamou o Dr. Belarmino, em troca da única galinha de capoeira que tinha, para descobrir o que Zezinho tinha.
Que doença que nada, mas o velho médico teve mesmo que ficar uma tarde inteirinha explicando o que fazia um engenheiro, um professor, um advogado, um escritor. O menino disse que se pudesse queria ser tudo isso, menos médico, que era pra não levar a comida de ninguém, pois na sua casa só tinha aquela galinha e ele ia levar. Dr. Belarmino choveu por dentro, gotejou por fora e comprou uma feirinha pra mãe de Zezinho.
A escola caindo aos pedaços era a coisa mais linda do mundo. Logo nos primeiros dias de aula deram um caderninho, um lápis e uma borracha. Guardou aquilo com o maior cuidado e disse à professora que só ia usar porque era o jeito, de tão bonitinho que era. Mas acabou não usando mesmo, pois o lápis que deram a Zezinho não tinha ponta. Não só não tinha ponta como o grafite todo. Era apenas um lápis de madeira, sem serventia. Sem o lápis nem a ponta do lápis não podia desenhar no caderninho nem transformar uma lua cheia em minguante quando quisesse, pois não tinha nada que apagar com a borrachinha.
Nunca disse à sua mãe nem à professora, nem a ninguém, que o seu lápis não tinha ponta. Levava tudo pra escola, mas não usava nada. O que a professora dizia ou escrevia no quadro guardava na memória. Não esquecia nada, era inteligente, sabia conversar sobre tudo e só tirava nota boa. Quando a professora entregava a prova para escrever as respostas, dizia que achava melhor que ela lhe fizesse argüição, pois respondia ali mesmo e já sabia na hora o que tinha acertado ou não. A professora achava estranho tal procedimento, porém aceitava o que ele pedia.
Um dia, assim que fez mais uma prova oral e já ia saindo da sala, a professora chamou Zezinho de volta e pediu que emprestasse o seu lápis para o seu amiguinho Joca terminar a prova, pois o lápis dele havia quebrado a ponta. No mesmo instante Zezinho pegou o lápis do bolso e disse:
"Professora meu lápis nunca teve ponta, senti falta mas nunca reclamei do único lápis da escola que já veio sem ponta. Achei que devia ser assim mesmo pra eu estudar mais e não precisar sempre da ponta do lápis para aprender as lições. Além disso, vocês mesmas disseram que aquele padre famoso escreveu um poema na areia e não precisou de ponta de lápis. Eu também vou ser assim. Escrevo tudinho na minha cabeça e mais tarde vou estudar o que escrevi pra ser bem maior na vida do que uma ponta de lápis".



Advogado e poeta
e-mail: rangel_av1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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