*Rangel Alves da Costa
Até meados dos anos 80 do século passado, as
terras pertencentes aos municípios de Poço Redondo e Canindé de São Francisco,
no sertão sergipano, na sua grande maioria pertenciam a um reduzido número de
proprietários, latifundiários que pouco exploravam suas riquezas e mantinham
aquelas vastidões muito mais pelo poder da posse do que seu efetivo uso. Um
destes latifúndios, de propriedade de Antônio Leite, o Toinho Leite de
Ribeirópolis, e denominada Barra da Onça, enquadrava-se no contexto da
improdutividade pela sua dimensão e como afronta àqueles que, pelos arredores
ou mais distantes, sonhavam em ter apenas um pedacinho de chão para garantir a
sobrevivência.
Foi neste cenário que começaram as lutas pela
reforma agrária na região sertaneja, até que no ano de 1986 surgiu, enfim, o
Assentamento Barra da Onça, pedra fundamental para o grande número de
desapropriações e assentamentos que surgiram daí em diante. Contudo, uma vida
de grandes dificuldades para os assentados, principalmente pela necessidade de
se reinventarem na terra árida, seca e sem opções produtivas, mas também pela
demora nas ações governamentais que garantissem a digna sobrevivência. Nesta
moldura de esperança ensolarada é que estava igualmente retratada a família de
Agenor Miguel da Silva e Maria de Fátima da Silva, gestora de uma prole que
passaria a somar treze filhos, sendo nove mulheres e quatro homens.
Dentre as filhas de Seu Agenor e Dona Maria
de Fátima estava uma franzina de dez anos, de cabelos escorridos e alourados,
olhos grandes e melancólicos, de sorriso pouco e sonhadora. Seu nome: Anete
Alves Silva. Desde criança convivendo com um mundo de pobreza e dificuldades,
morando em casa de taipa apinhada de gente, passando até fome, a menina Anete
só começou a perceber alguma mudança em sua vida quando o assentamento foi
visitado por pessoas desconhecidas e retratando aquela realidade através de
fotografias. Segundo ela, já estava na escola da comunidade com a professora e
mais dois colegas quando chegou um senhor pedindo para fotografá-la ali mesmo
sentada na cadeira escolar. Este fotógrafo outro não era senão o mestre da
fotografia Sebastião Salgado.
Com a despedida dos visitantes, a difícil
vida tomou sua normalidade. Verdadeira dádiva sagrada quando a família recebia
alguma cesta de alimentos ou qualquer quilo disso ou daquilo para ajudar na
sobrevivência de tantos num só e empobrecido lar. Na imaginação de Anete - que
sequer recordava mais daquele retrato tirado na sala de aula -, nada mudaria
senão por força do tempo e destino. Tudo estava nas mãos de Deus. Até que cerca
de um ano após a fotografia chegaram outros visitantes e dessa vez para afirmar
que o seu retrato havia sido escolhido pela Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB) para figurar nas cartilhas e cartazes da Campanha da Fraternidade
de 1998.
E mais: que dali em diante Anete teria seus
estudos pagos e que a família seria ajudada no que necessitasse para a
sobrevivência. E não demorou muito para que chegassem doações não só para sua
casa como para outras famílias da Barra da Onça, e também para outras
comunidades de Poço Redondo. Desse modo, segundo Anete, toda sua vida começou a
mudar a partir daí, como num sonho bom que estava acontecendo. E o sonho foi
acrescido quando o então governador Albano Franco mandou providenciar uma casa
bem maior e confortável para a numerosa família.
Assim os passos da mudança na vida de Anete,
a menina da Barra da Onça fotografada por Sebastião Salgado e que ganhou mundo
na Campanha da Fraternidade de 1998 (Fraternidade e Educação: A Serviço da Vida
e da Esperança). Em março de 98,
comentando sobre a fotografia contida no cartaz, Dom Ervin Kräutler, Bispo de
Xingu/PA, teceu as seguintes observações: "Com seu rosto e cabelos
desordenados, esta menina representa milhões e milhões de crianças-jovens, do
Oiapoque ao Chuí, de Fernando de Noronha a Tabatinga. Pode ser da roça ou das
periferias das cidades. Sua posição, suas mãos segurando o lápis, seu olhar e
sua boca nos dizem: 'Olhe, estou aqui! Quero aprender! Quero ver! Quero ter
vida digna! É por isso que me esforço, faço até sacrifícios! Mas eu preciso de
vocês! Quero que me ajudem!'. Seus olhos, tão expressivos, abrem-se para um
futuro que se deseja melhor: justo, fraterno, solidário. São olhos ávidos de
amor e compreensão. Seu brilho traduz e expressa uma grande esperança: a de que
um dia todas as lágrimas serão enxugadas e, finalmente, haverá de surgir um
mundo novo, sonhado e querido por Deus".
Hoje Anete, mais conhecida como Nety, está
com trinta e um anos de idade, ainda moradora da Barra da Onça, permanecendo
muito agradecida àquele inusitado acontecimento em sala de aula, quando uma
fotografia mudou totalmente os rumos de sua vida. Casou-se aos dezessete anos,
mas hoje está separada e em relacionamento com outro sertanejo. Concluiu o
ensino fundamental e não prosseguiu nos estudos. Atualmente, conforme confessa,
seu sonho maior é fazer tratamento para ter um filho, vez que um problema de
ovário sempre a impediu de ser mãe, esperança grande que ainda deseja realizar.
Desse modo, vinte anos depois e Anete, ou a
Nety de agora, pode ser ainda encontrada na Barra da Onça, sempre bela, alegre,
com sorriso largo e olhos bem diferentes daqueles retratados por Sebastião
Salgado. Olhos de vida, de agradecimento, vívidos e esperançosos pela dádiva
maior que lhe possa acontecer, sob os préstimos da medicina: conseguir ser mãe,
enfim. E quem desejar ajudá-la a realizar seu tratamento, pode entrar em
contato com este articulista pelo telefone (79) 99830-5644. Anete ficará muito
grata por mais este presente de vida.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Não somente mudou a vida de Anete. A fotografia de Sebastião Salgado foi um momento de inflexão na vida do Poço Redondo, como um todo. É impressionante o progresso econômico e social do município com o início da Reforma Agrária. Há 40 anos que Poço Redondo cresce vigorosamente; a níveis de Nossa Senhora do Socorro e Nossa Senhora da Glória. A foto de Salgado veio consolidar o processo. E Anete e seu jeitinho de garotinha "sem terra" é parte primordial disso. Excelente!
Postar um comentário