SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 15 de maio de 2010

PESSOA DE SORTE (Crônica)

PESSOA DE SORTE

Rangel Alves da Costa*


Nunca ganhou um prêmio milionário numa loteria, jamais encontrou um bilhete premiado nem teve sua carta sorteada num desses concursos que dá casa mobiliada e carro na garagem. Nunca teve a sorte de ter seu destino modificado de uma hora pra outra porque a vida brindou com o inesperado, mas era uma pessoa afortunada pelos muitos presentes que a vida lhe proporcionava a cada dia. Era verdadeiramente uma pessoa de sorte, mas uma sorte construída pelo seu fazer cotidiano.
No seu íntimo de pessoa preocupada com as injustiças sociais, com a pobreza e a miséria gritantes atingindo uma infinidade de indivíduos pelos quadrantes do mundo, com as crianças que choram o seu grito de fome e de dor sem compreenderem porque são vítimas desse tanto faltar de tudo, com os casebres distantes e de portas fechadas guardando dentro de si segredos que aos olhos ferem de pesar pelas vidas que quase não existem, com as realidades tão presentes e que nunca mudam nas mãos que se estendem para pedir e no contentamento com a esmola para sobreviver, com a desilusão nas faces das pessoas que sorriem forçadamente para dizer que comungam com a existência, com a vida dos outros porque achava os outros importantes na sua vida e porque a felicidade do próximo traz conseqüências para sua felicidade, guardava a sorte maior que a grande maioria das pessoas não tem: o poder de sentir pelos outros.
Por ter a sorte de sentir pelos outros, compartilhava seus afazeres na vida com alguns instantes para se doar ao próximo que tanto necessitava de instantes de carinho, conforto e compreensão. Assim, nas tardes de sábado ou domingo, com chuva caindo ou sol esturricando, arrumava um tempinho para visitar asilos e por ali ficar zanzando de um lado para o outro conversando com os seus velhos amigos, ouvindo sobre suas carências e necessidades e procurando ajudar no que fosse possível. Porque existir não é apenas estar descompromissado por aí, mas é primordialmente ser o compromisso de que a vida não se resume a si nem a si mesmo.
Era uma pessoa de sorte porque a vida não lhe fez pessoa de muitas posses materiais e, por consequencia desse tanto ter dinheiro e coisas, lhe faltar o senso de companheirismo, de preocupação com os mais necessitados, do poder de se rebelar contra o império cada vez mais crescente das injustiças sociais, do caminhar alegre e sorridente pela vida e conversar com conhecidos e desconhecidos e fazer amigos e mais amigos. Os ricos geralmente não têm tempo para essas pequenas coisas justamente porque são muito pequenas aos seus olhos. Essa sorte que não cabe aos endinheirados não tem preço para os que possuem a grande dádiva do senso de humanidade e companheirismo.
Nos instantes em que ficava sozinha e pensando muito mais na sorte dos outros do que em si mesma, ficava indagando: existirá sorte maior nessa vida do que não ter inimigos, do que poder caminhar pelas ruas sem estar correndo e fugindo de tantos inimigos realmente existentes, de poder colocar a cadeira de balanço em frente de casa e ficar vendo pessoas que passam cumprimentando, desejando boa sorte, arrumando um tempinho para também sentar e conversar, para ir dialogar com a filha da vizinha que está revoltada pelas tantas dúvidas de sua idade, para ensinar a filhinha de sua amiga como se faz uma boneca de pano ou para ser chamada a palestrar no conselho comunitário do bairro?
E continuava se perguntando: quantos têm a sorte de poder deitar sem preocupações que afastem o sono, que façam dos sonhos bons pesadelos terríveis, que tenham medo de acordar da noite mal dormida porque teme o dia, porque teme as pessoas no dia e os encontros que certamente irá ter nesse dia? Tinha essa sorte de poder levantar e abrir os braços e agradecer a Deus por tudo na vida e observar que a sua agenda marcava para aquele dia mais um encontro com a vida.
Por isso mesmo não queria ter a sorte dos grandes prêmios em dinheiro, daqueles em que a pessoa diz que vai sumir pra bem longe e nem quer ver mais a cara das pessoas que tanto conhece, como se o acaso pudesse transformar a pedra em ouro. Bastaria receber mais presentes, e desses que já recebe desde a primeira luz do dia, que é ter a vida para viver em plenitude, doando de si para ter muito mais. E que lindo presente é a felicidade!




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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