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sábado, 15 de maio de 2010

SER SERTÃO: DA ARTE DA FÉ E DA RELIGIOSIDADE – I

SER SERTÃO: DA ARTE DA FÉ E DA RELIGIOSIDADE – I

Rangel Alves da Costa*


O velho gostava de sentar-se nas proximidades da igreja matriz para ficar observando a ida e vinda dos fiéis, prosear com um ou com outro que passava, proporcionar alguma rápida explicação sobre um salmo ou versículo. Entretanto, ele mesmo era um tanto duvidoso da crença de muitos daqueles que passavam por ali no maior charme, cheirando feito perfume derramado e rebolando-se como numa passarela. Outras pessoas não, pois sabia que junto com elas ia a devoção em sua plenitude, numa religiosidade que deixava a alma feliz só de pensar na igreja, seus símbolos e suas lições.
Contemplava com paciência todas essas situações e no seu íntimo aviva-se o respeito que tinha pelo poder da religião que, através de diferentes crenças e intenções dos seus praticantes, possui o dom de unir em seu nome pessoas de todas as raças, sexo, nacionalidades e convicções políticas. Respeitava o sincretismo religioso e era sincrético, dando sua devida valorização tanto a católicos como a protestantes, bem como aos adeptos dos cultos de origem africana e demais seitas e crenças. Para ele, a importância estava na religiosidade em si e não no uso ou abuso que dela se possa fazer. O que finge aderir e disto tira proveito indignamente, nada melhor do que o castigo proveniente da própria divindade que falseia professar.
Ainda contemplativo e fazendo inúmeras considerações mentais, o velho viu um jovem sentando ao seu lado. Gostava de conversar com ele, pois mesmo rapazote já possuía agudeza no pensamento e não tinha grandes dificuldades em dialogar sobre qualquer assunto. Mas naquele dia o jovem queria mesmo era somente ouvir e, como um processo de transmissão mental do pensamento, foi logo pedindo que o velho lhe falasse sobre a importância da religião para o sertão, seus mecanismos de atração e limites de atuação. Parecia título de trabalho acadêmico. E o velho se dispôs a atender o desejo do seu bom amigo. Então começou a falar:
A igreja, como se sabe, é muito mais que um templo imponente e cheio de ornamentos, rico, de uma riqueza secular e conservadora. Num casebre onde se cultue a fé religiosa poderá está muito mais próxima a presença de Deus do que numa catedral. Da mesma forma, não é a rica vestimenta do sacerdote, do responsável pelos sacrifícios religiosos, e que geralmente é cheia de bordados dourados para impressionar o pobre fiel, que o tornará mais conhecedor dos ensinamentos da bíblia. Uma batina apenas veste um corpo já vestido, mas mesmo assim os espíritos de muitos padres continuam nus e, mais que isto, muito mais distantes do que seus palavreados mansos e piedosos querem transmitir como verdades absolutas.
No sertão, a igreja continua tendo o mesmo papel que tinha no período colonial. Quer dizer, impondo o que bem deseja e espalhando entre os rudes e incultos os princípios de obediência ditatorial às suas diretrizes. Em tudo há o inferno, o queimor eterno pelo pecado, a palavra que amedronta e sentencia ao fogo eterno porque assim o homem da igreja quer. E onde estará o bom Deus, meu Deus, que tanto esses homens de batina esquecem?
Cada padre que chega às paróquias já traz planos elaborados para cumprir como missão junto às comunidades. Como tais planos são delineados pelas dioceses, que são circunscrições territoriais da igreja sujeitos à administração de bispos, e estes nem sempre conhecem as reais características das diversas comunidades, das pessoas ali presentes e suas verdadeiras necessidades espirituais, mesmo assim arbitrariamente mandam que transformem a igreja num curral e os fiéis em rebanhos cativos.
Quando os novos padres chegam às paróquias outros intentos são logo colocados em prática. Nos sermões, ao invés da preocupação maior em exaustivamente falar dos ensinamentos de Deus, inverte-se tudo e uma nova cartilha é repassada para os fiéis. Primeiro esculhambam com a administração municipal, afirmando, diante da bíblia, que perseguições políticas se alastram, os parentes do prefeito se locupletam com as verbas públicas, obras não existem e a miséria é galopante. Até que não estarão mentindo não, só que as preocupações dos padres não devem ser exatamente estas. Deveriam, sim, estar de olho nas outras igrejas que vão tomando cada vez mais os fiéis da igreja católica. E essa migração toda começa também pelo discurso ultrapassado da igreja e pelas ações abomináveis de alguns que usam batina e dizem que são padres.
Em seguida tentam desmoralizar os demais líderes políticos, dizendo que são farinha do mesmo saco, são coniventes com a situação de penúria existente e querem ter sempre o poder nas mãos para acabar de matar o povo, por isso mesmo é que os eleitores devem estar de olhos bem abertos. Quer dizer, um discurso típico de políticos opositores é tido como algo relevante para que o padre baseie todo o seu sermão em fatos como tais. E a palavra de Deus?
Depois o verbo sedento do homem da igreja se volta contra a polícia e afirma logo que os policiais, como agem no dia a dia, são mais bandidos do que os próprios bandidos. Assim, nesse percurso sermônico, vão falando o diabo, metem o pau, achincalham, e o sermão em si, a palavra cristã pregada do púlpito, vai sendo relegada a segundo plano, deixada de lado. Num desses discursos políticos um fiel interrompeu e pediu para que o padre falasse um pouco sobre as acusações de abusos sexuais na igreja, e foi quando o padre se virou raivoso para a beata e expulsou-a imediatamente da igreja, sob a acusação de estar blasfemando.


continua...




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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