SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 2 de maio de 2010

SER SERTÃO: DA ARTE DE NAMORAR – III

SER SERTÃO: DA ARTE DE NAMORAR – III

Rangel Alves da Costa*


Se num determinado período o sertão esturricava e as oportunidades de trabalho sumiam, até mesmo no duro ofício da roçagem e capinagem, quebrar pedra e juntar o mato seco num aceiro para fazer coivara, o moço apaixonado e doidinho pra deitar logo com sua amada começava a sentir seus planos ameaçados. Sem trabalho não se ganhava dinheiro algum; sem vintém não poderia montar casa; sem tostão não podia nem pensar na feirinha básica sertaneja; sem "mirréis" adeus casamento, ao menos por enquanto. Pensava tanto em oferecer uns comes e bebes aos amigos, dar adeus na alegria e no encontro à sua vida de solteiro. Mas ficava difícil, sem ter o ganha pão tudo ficava muito mais difícil.
Ameaças desse tipo deixavam o rapaz apreensivo. Nessas ocasiões, a solução que se encontrava geralmente era no sentido de viajar para arrumar emprego, seguir rumo ao sul do país, estabelecer por um curto período de tempo no Rio de Janeiro ou em São Paulo na esperança de arrumar emprego. Nordestino escorraçado pela seca não tem outro destino, ou Rio ou São Paulo. Trabalhar de ajudante de pedreiro, qualquer coisa.
Assim, aquele que estava acostumado aos afazeres na lavoura, no chiqueirar e ordenhar o gado, no plantar e colher o que brotasse da terra, forçosamente tinha de partir para as distâncias desconhecidas, se submeter aos mandamentos capitalistas do trabalho naquele mundão amedrontador de concreto e sangue. Não havia outra saída. Fazendo massa, jogando tijolos, carregando verdadeiros baús de porcaria, sendo explorado sempre e mal remunerado sempre, mesmo assim o bravo sertanejo juntava alguns "caraminguás" e ia enviando, sempre que podia, uma parcela do ganho para que a noiva fosse arrumando as coisas para o tão desejado casamento ao retornar. Muitos desses noivos, contudo, ainda continuam por lá, misturados ao cimento de algum grande edifício.
As mãos calejadas do rapaz, sempre cansadas. não se cansavam de escrever cartinhas de difícil leitura (não sabia escrever direito aqui, lá não tinha tempo de aprender) para sua amada. A aliança estava amassada e sem cor, porém reluzia a cada saudade que batia. E por isso a aliança sem cor vivia reluzindo na saudade demais. Coisinhas assim pretendia expressar o moço nas suas missivas. Dizia eu volto logo Maria, não consigo te esquecer Joaninha, não agüento mais Estefânia...
E no sertão a moça saudosa sentia oprimir-lhe o coração cada carta que chegava, Mais de um mês entre a postagem e o recebimento, e mesmo assim porque ela ia perguntar à funcionária dos correios se tinha chegado alguma coisa. Mas ficava feliz toda vez que lia aquelas linhas que somente o amor decifrava. Logo logo o seu amado estaria de volta. Ele disse. Mas quantas vezes ele já disse isso? Esperá-lo fielmente, com todo o respeito do mundo, virtudes daqueles tempos sertanejos.
As famílias mais antigas surgiram nesse contexto. Mais antigas no viver de hoje e não no de ontem, quando muitas vezes se casava sem ao menos saber com quem deitaria na mesma cama. De qualquer modo, em qualquer cenário que estivessem, os pais sempre quiseram o melhor para os seus filhos e estes sabiam respeitar os pais e o próximo, principalmente os mais velhos.
O progresso fez desaparecer as cadeiras juntinhas dos namorados; as mães abriram a guarda; e o que era sagrado virou profano. O velho parecia ao mesmo tempo saudoso e entristecido com o próprio relato. E continuou espalhando suas pérolas.
O romantismo do amor, do namorar pela palavra, pelos segredos baixinhos nos ouvidos, esmoreceu quando os namorados descobriram táticas mais audaciosas. Até que os pais da moça se certificassem das intenções do rapaz, lá se ia um tempão perdido. Afoito, fogoso, com vontade de possuir logo a amada, o moço matreiro passou a ter uma ideia bastante original: fugir com a moça. Logo se via, a cada manhã, vez por outra, os comentários em cada esquina do lugar: Fulano roubou a filha mais moça de sicrano!; Fulana fugiu com sicrano! A sonsa da fulaninha surgiu. E então surgiam os outros comentários mais maldosos: Também pudera, já tava grávida! Num dou um mês e o besta entrega ela de volta aos pais! Até que enfim teve um besta pra salvar o nome daquela! Êta povinho sem jeito, meu Deus, disse o velho, deixando transparecer um sorriso.
Na verdade, a estratégia utilizada pelo rapaz cometedor do ilícito amoroso era muito simples. Os namorados acertavam que tal dia, em determinada hora, quando todos da casa estivessem dormindo, ela pularia a janela dos fundos da casa ou abriria devagarinho, sorrateiramente, a porta e sairia com cuidado, sem que ninguém pudesse ouvir ou desconfiar de nada. Levaria somente uma pequena sacola com roupas e um coração imenso, capaz de delatar suas vontades. Ele estaria esperando nas proximidades, num ponto combinado.


continua...



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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