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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 21 de maio de 2010

SER SERTÃO: DA ARTE DE MENTIR – III

SER SERTÃO: DA ARTE DE MENTIR – III

Rangel Alves da Costa*


Dizia o velho que diante do político qualquer um passa por mentiroso. Todo mundo vê, sabe o quanto se gasta em uma campanha, e que se calculado na ponta do lápis é muito mais dinheiro do que a soma dos salários dos quatro anos do mandato, e mesmo assim teima em pensar que o político gastou para ser eleito porque quer ajudar o povo, transformar o município num canteiro de obras ou porque foi um desejo da população e ele não pôde recusar.
Balela, tudo balela. Pensamento medíocre. Falta de noção para compreender que o que move a sede política não são as boas intenções e nem a dita administração do povo para o povo, mas sim a aquisição da influência política além município, o poder de submeter e sujeitar os adversários, os cargos públicos ao seu dispor, o manejo de verbas, o clientelismo e o assistencialismo, o poder de barganha, o enriquecimento ilícito, dentre outras coisas absurdas que nem sonha a vã filosofia sertaneja.
E o bajulador número um, o tal do "cc", ainda diz que ninguém nunca fez tanto como o seu prefeito. E ele tem razão, só não tem aquele que sabe que há qualquer coisa de podre no reino da Dinamarca. Este é tido como mentiroso.
Infelizmente o sertão acostumou-se com tudo isso. São olhos que não querem ver; palavras que desconhecem a verdade; pensamentos cúmplices com a fragilidade do ser. Tão forte e ao mesmo tempo tão fraco, o sertanejo, muitas vezes, parece querer viver num imaginário que possa afastar a descrença política, os sofrimentos com as estiagens e as lástimas oriundas da situação social do país. E, se o que ameniza a tristeza é o despertar da alegria, que esta chegue mesmo com o vexame nos olhos. Aí é que a mentira toma feições que ninguém sabe onde vai chegar.
Muita gente, vivinha da silva e gozando da mais perfeita saúde, foi dada como morta e lamentada por muitos. Uma pessoa tão boa e morrer assim, dizia um. Mas morreu mesmo, quem foi que disse? Perguntava outro. A resposta era de que alguém ouviu de alguém que tinha ouvido de outra pessoa. Mas quem disse a essa primeira pessoa? Era a indagação. Quem disse a ela foi a ex-namorada dele, do que morreu. Conte essa história direito, exigiu um. Ora, quando ela perguntou à ex-namorada como ele ia, fulana disse logo: "Morreu". Morreu pra ela besta, porque quer ver o dito mortinho da silva, e não tá vendo que essa conversa todinha já nasceu mentirosa?
Certa feita, chegou uma dessas construtoras do sul do país para fazer uma obra numa cidadezinha, bem lá nas maiores distâncias do sertão. Fato novo, e a mentira começou a rolar solta. Menino não podia brincar na rua, muitas portas viviam dia e noite fechadas e as velhas rezando um terço atrás do outro. Para os meninos, cada máquina daquele tamanhão era um bicho; os velhos asseguravam por tudo na vida que as elas iam engolir as casas.
Cada ronco daquelas bichonas e lá se ia Joãozinho pra debaixo da cama. Tia Carmem se mijava toda, era o que diziam. Dizem que Jurema Juiriti, uma solteirona que existia por lá, se mudou por causa da poeira que as máquinas faziam. Quando pensava que ainda estava toda empozada que nada, a poeira já tinha tomado tudo, só deixando mesmo os dois olhinhos ansiosos para ver macho passar.
Mas nem tudo foi desgraceira com a chegada dessa construtora. Na verdade, para certas pessoas foi uma festa, principalmente para as mocinhas carentes do lugar. Os pais diziam que aquilo tudo era o fim do mundo e pediam às filhas que rezassem para ter a graça divina na hora da morte, que se aproximava e não tinha jeito. E as mocinhas, na maior sonsice do mundo, porém sibites que só vendo, diziam aos pais que já que tinham de rezar era melhor que fosse na igreja, pois lá estariam mais próximas da salvação. Poucos minutos depois lá iam elas, a caminho da perdição, com tudo que fosse trabalhador na obra.
Como matuta não gosta de matuto, homem de fora é sempre bem recepcionado e melhor ainda apreciado. O mais incrível disso tudo é que nessa construtora, com mais de trinta funcionários, nenhum era casado, ao menos foi o que as mocinhas disseram. E nenhuma era de mentir, até que se prove o contrário. Os mais velhos, coroas mesmo, ou eram viúvos ou divorciados, pois assim disseram. Todos os outros eram solteiros, e pelo jeito nem namoradas tinham deixado lá pras bandas onde residiam. Quanta verdade aos ouvidos das mocinhas, juradas de pé de junto, de joelho na terra...
E conversa vai e conversa vem; um presentinho aqui outro acolá; tudo no maior agrado do mundo. E era tanto cinismo, tanto descaramento, que muitos pais começaram a aceitar os tais dentro de suas próprias casas. Namoros firmes, até noivados. E a obra acabando, meio mundo de mulheres grávidas e as promessas rolando. Não se preocupe, pois assim que a empresa for embora não vai nem uma semana e volto aqui pra buscar você, era o que mais se ouvia.
O tempo passou e dava pena ver meio mundo de engenheirinhos, diretorzinhs, chefinhos e outros zinhos, de cinco a seis anos, tudo sem nunca ter visto o pai. Uma vez um perguntou à mãe pelo pai e ela assim respondeu: "Tá abrindo outro buraco em outro lugar, mas um dia ele volta...".


continua...



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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