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segunda-feira, 31 de maio de 2010

A VOZ DA MONTANHA (Crônica)

A VOZ DA MONTANHA

Rangel Alves da Costa*


De repente, lá no alto da montanha, primeiro chegou uma ventania avassaladora, derrubando e desfolhando árvores, espalhando pelos ares e levando para bem longe galhos e folhas secas que já estavam impedindo o surgimento de novas espécies. Depois nuvens escurecidas apareceram por instantes, até se ouvir um forte barulho de trovões. Minutos após, tudo se acalmou novamente, na brisa, no azul e na paisagem encantadora lá em cima da montanha. Foi então que se ouviu uma voz, surgida bem no ponto mais alto e logo espalhada feito eco pelas proximidades e distâncias.
Você ouviu aquela voz, parecendo ter vindo lá de cima da montanha? Alguém ouviu o que ouvi, algo parecido com uma voz que veio do topo daquela montanha? Que palavras estranhas foram estas que acabamos de ouvir, todos ouviram bem e sabem de onde foram pronunciadas? Que foram palavras não restam dúvidas, mas alguém pode repetir o que verdadeiramente ouviu? E um misto de certeza e dúvida se instalou entre todos.
O padre veio correndo de dentro da igreja para o meio da praça, de olhos voltados para a montanha e se benzendo sem parar, dizia: São os sinais, são os sinais da profecia, pois a montanha um dia deveria falar e dizer que... Mas o que foi mesmo que ela disse? A beata num segundo já estava ao lado do sacerdote, também se benzendo e de rosário na mão, procurando reforçar as suas palavras: Louvado por Deus louvado, que o Santíssimo nos proteja, porque quando esta voz chegasse dizendo que... Dizendo o que mesmo seu padre? Também queria saber sua intrometida, respondeu o sacerdote, levando as duas mãos ao peito num gesto de oração.
De norte a sul da cidade foram acorrendo pessoas para o centro da praça, formando uma pequena multidão onde já estavam em orações o padre e sua fiel discípula. Outra beata chegou carregando um crucifixo na mão e falando bem alto: Estava escrito que essa voz viria, que essa montanha falaria, que do seu cume se ouviria que... se ouviria que..., Mas se ouviria o que mesmo meu Deus? Mas deixa pra lá, porque estava escrito que essa voz viria... E Maria das Neves, uma prendada e afamada fofoqueira, aproveitando o momento propício para soltar das suas, foi logo dizendo: O padre acabou de dizer e a beata confirmou que aquela voz que se ouviu não foi bem uma voz, foi um grito e um grito de raiva vindo do alto da montanha, e esse grito bem alto era dizendo que... Era dizendo que chegou o apocalipse, o juízo final, e agora é que vamos ver quem tem pecado pra vender...
Aí sim, ouviu-se um grito do padre: Você enlouqueceu mulher de pouca fé, traidora dos preceitos divinos, enxerida da vida alheia, fofoqueira, pois acreditem que não dissemos uma só palavra neste sentido. O que acho, e talvez a beata Pureza ache também, é que aquela voz, calma e doce, queria anunciar que... Que vocês todos vão pra suas casas procurar o que fazer, vão trabalhar, vão orar para pedir perdão a Deus pelos tantos pecados cometidos, pois somente assim poderão aliviar as suas dores se aquela voz disse o que realmente estou pensando...
Está pensando o que seu padre? Diga, diga. E se fez o maior barulho no meio da praça. Como não arranjou outro jeito, o padre Santinho achou melhor convidar todos os presentes para discutir essa questão dentro da igreja. Até achou isso uma boa saída, pois somente assim poderia reunir os fiéis que há muito haviam desaparecido, o problema é que não sabia bem o que iria dizer, o que poderia explicar convincentemente sobre o que estava pensando. Nem ele mesmo sabia direito o que estava pensando.
No momento em que todos rumavam para a igreja, eis que surge correndo um menino, já demonstrando cansaço e parecendo ter algo muito importante a dizer. Calma meu filho, de onde vem assim nessa correria toda, descanse um pouco e depois fale. O que tens a dizer com tanta pressa? É que seu padre, eu estava lá no alto da montanha caçando passarinhos e ouvi uma voz estranha, e essa voz disse...
Diga, diga, gritava o povo. E o menino falou: Disse que o mundo precisa ficar mais em silêncio, fazer silenciar o barulho das guerras e das violências, e que os homens precisam ouvir mais antes de acharem que tiveram a certeza do que ouviram, pois somente assim poderão ouvir e entender a voz do Senhor.




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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