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sábado, 22 de maio de 2010

SER SERTÃO: DA ARTE DE MENTIR – IV

SER SERTÃO: DA ARTE DE MENTIR – IV

Rangel Alves da Costa*


E o velho continuava lançando seu olhar verbal sobre a mentira e o seu contexto no sertão, fato que aliás não requeria nenhum esforço, e nem precisa dizer os motivos...
Com as cidades crescendo cada vez mais, com a juventude sendo intensivamente guiada pelas indecentes propostas televisivas, a mentira alcança o patamar do medo. É, acreditem, ao patamar do assombroso. E é o medo que faz as pessoas mentirem na tentativa de livrar as suas criações malcriadas. Assim, dizem que um certo pai, acostumado a ouvir mentiras e repassá-las adiante com muito mais veneno, ficou sem jeito quando alguém disse, mesmo afirmando não saber se era invencionice ou verdade, que ficou sabendo por outra pessoa que por ali haviam umas seis mocinhas de uns quinze anos, pouco mais ou pouco menos, e todas grávidas, buchudinhas daquelas que parecem que se fartaram do prato cheio.
Pouca vergonha, mas era essa a idade mesmo, cerca de quinze aninhos, mal saídas do fedor do mijo e já grávidas, acentuou a pessoa que contou. O pai falador da vida dos outros que só ele, aumentou a antena do ouvido, captou bem a novidade, baixou a cabeça e saiu pensativo. Mas quem será, quem será; se fosse uma ou duas seria fácil saber, mas umas seis; quem será, quem será...
Logo adiante, não só tinha solucionado o problema como sabia dos nomes das mocinhas. Não se sabe como lhe chegou a informação, mas verdade é que as pessoas quase sempre já sabem o que os outros fazem tudo para saber. Contudo, o número das mocinhas não era aquele não, era mais, pois a notícia repassada já falava em doze ou mais. De repente, pensou ele, não vai sobrar mais nenhuma mocinha nessa idade que não esteja grávida. O pior foi quando matutou, matutou e lhe veio à mente que uma de suas filhas estava exatamente nessa faixa etária. Será?...
Bem que tinha notado sua filha um pouco diferente nos últimos dias, com uns gostos estranhos e mais desconfiada do que nunca. Mas será, logo ela que teve uma educação tão exemplar, tão mimada que foi e ainda é? Mas se tiver grávida só pode ser culpa daquelas novelas que nada mais fazem do que ensinar safadezas, desestruturar as famílias, fazer com que as mocinhas percam sua inocência com tantas lições desavergonhadas. Será que ela era uma das tais? Fosse como fosse, já sabia o que fazer, pois nada melhor do que querer esconder um erro do que dizendo que todos os outros são errados também.
Assim, já que sua filha ia cair na língua do povo, que todas as filhas dos outros ficassem enlameadas também. Com esse pensamento maldoso saiu pelo lugar falando a um e a outro, como se não quisesse dizer nada disso, que soube que a filha de não sei quem e mais não sei quem estavam grávidas, e o maior absurdo era a pouca idade pra tanta sem-vergonhice. Nesse percurso, em pouco tempo quase toda menina de quinze anos estava na boca do povo. E o povo espalhava não só pelo prazer de dizer, mas principalmente para colocar todas juntas na fogueira onde a sua filha ou sobrinha também estivesse ardendo.
Contudo, esses mesmos pais quando chegavam em casa e mostravam-se totalmente desesperados, nem pensavam duas vezes, nem sequer procuravam ouvir as filhas e iam logo arriando o couro cru na maior crueldade. Muitas foram chamadas de prostitutas, vagabundas e tudo que é nome pejorativo, tiveram que fazer exames e não deu em nada. Outras parecem que gostaram de ser chamadas assim e...
O pai que havia começado aquele inferno todo agora se sentia satisfeito, plenamente realizado, ao menos era isso que pensava. Ao menos sua filha não havia decepcionado. Mas como a mentira tem perna curta, como o débito da maldade é pago com juros e correções aqui na terra mesmo, outro rapaz, tido e havido por todos como o maior mentiroso da cidade, encontrou esse pai sorridente, chamou-o ao lado e foi logos dizendo que mesmo que ele achasse que era mentira tinha de dizer que sua filha estava grávida sim. E mais, sabia quem era o culpado pelo bucho escondido da menina.
O agora desditoso pai, com a dor que se sente quando cai um rochedo no dedo mindinho, nem ouviu o restante das palavras do rapaz e saiu quase correndo pra casa. Tinha que saber daquela história direito, tinha que receber explicações, tinha que ter a certeza de estar criando uma desavergonhada em casa.
A esposa já sabia de tudo. E ele que tanto fez e tanto bordou tinha agora que suportar aquela verdade. Com a filha dos outros era bom, mas agora a coisa mudava de tom. Mudava de tom e de cor, pois o homem foi embranquecendo, como se não tivesse mais sangue, até tomar um amarelado de defunto. E caiu morto. Por isso mesmo é que dizem que no sertão até a mentira mata.


Mais calmo e sorridente, o velho prometeu que no próximo encontro iria falar sobre verdades, mesmo que fizessem doer àqueles que vivem na mentira. Começou a serenar e os amigos correram. O velho ficou porque sabia que aquilo não passava de mentira de chuva.



continua...



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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