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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 4 de maio de 2010

SER SERTÃO: DA ARTE DE CONVERSAR - I

SER SERTÃO: DA ARTE DE CONVERSAR – I

Rangel Alves da Costa*


Por todo o conhecimento que o velho tinha, expressando isto em tudo que conversava, discutia, explicava, e pela força dos argumentos que demonstrava, qualquer um que não conhecesse suas origens certamente afirmaria se tratar de uma pessoa com alto nível de instrução, ilustrado nos mais afamados bancos universitários.
Não seria difícil também caracterizá-lo como filósofo, essa espécie de gente em extinção, também conhecido como doido varrido, cuja preocupação maior é com os princípios das causas das coisas. Uma tal de metafísica, como diria o outro, que apostou um dos filhos defendendo que esse norteamento filosófico que estuda a essência das coisas nada mais era do que a meta física de qualquer atleta de ponta.
Mas não, o velho não era nem doutor de universidade nem filósofo do inexplicável. Toda a sua inteligência era proveniente da própria vivência, da observação apurada das situações sertanejas, do poder de discernimento entre o certo e o errado, daquilo que se chama curiosidade, esse olhar despercebido que tanta luz traz ao conhecimento. Era um autodidata, isto sim, instruído na cartilha da presença, da vivência e convivência com aquele mundão que por si só já era riquíssima escola. Assim, pelos próprios esforços é que se tornou suficientemente alfabetizado nas prudentes lições agrestes.
Sendo igual aos demais sertanejos, o velho guardava como certeza que as únicas coisas que podem diferenciar as relações entre todos são a riqueza, o respeito e a seriedade. Sertanejo rico, metido a besta, só diz que é do sertão porque é o jeito. O que respeita os outros e é sério não anda como mercadoria na boca do povo, não vive alimentando o verbo inútil daqueles que não têm o que fazer. Porém, existia um aspecto que o velho reputava como a coisa mais importante num caboclo, que é a simplicidade, o caráter originário, a desafetação das influências prejudiciais. O homem é o que é, e acabou, dizia. Pode chamar de caipira, de jeca, de matuto, de tudo, seja lá o que for, mas o cabra deve ser somente o espelho dele mesmo.
Quando certa feita apareceu um turista no lugar, que pelas feições e sotaque certamente era sulista, fazendo lá umas observações só Deus sabe sobre o que, para conversar com as pessoas foi a maior mão-de-obra. Esgueirando-se, fugindo, as pessoas ficavam pelos cantos cochichando, fazendo exercícios de adivinhação sobre quem era o estranho e o que ele queria.
Nesse duvidar, disse um ter a certeza que era da polícia federal e, não se sabe o porquê, foi logo despistando, saindo de fininho; outro foi logo afirmando que aquele era dirigente do movimento dos sem-terra, pois tinha ouvido falar que eles planejavam invadir até quintal maior de cinco metros, e com apoio e dinheiro de Brasília para botar os pais de família pra correr; e ainda outro teimou como o homem era artista da Globo. E por que? Alguém perguntou. "Ora, metido a besta desse jeito e cheio de não-me-toques só pode ser artista de novela. E não sei nem porque ele tá aqui, pois já morreu em duas novelas. Só mesmo da Globo pra ter sete vidas. Sei não, tenho até medo dessas coisa", disse o rapaz, comprovadamente amedrontado.
Como se sabe, o estranho não passava de um turista, porém desses que ficam dando volteios por preguiça de insistir no pedido de informações. A sorte dele foi que apareceu uma dessas crianças sertanejas que quando vê alguém diferente na cidade não larga o pé até receber uns trocados, um agradinho, qualquer coisa. Assim, essa criança se aproximou do rapaz e ficou rodeando, ora quase pisando no seu pé, ora escondido por trás das árvores.
De repente, percebendo que o seu tostão estava mais difícil de ser conseguido do que pensava, se aproximou do estranho e disse que se ele quisesse, logicamente que em troca de uns tostões, o levaria naquele mesmo instante para conhecer a pessoa mais inteligente, mais sábia, mais tudo no mundo. E não deu outra. O rapaz deu um sorriso e duas moedas. E foi prontamente levado à presença do velho, que estava solitariamente sentado num banco da praça.
O turista se aproximou, cumprimentou o velho e foi convidado a sentar. Pelo que se observou o rapaz não estava interessado em obter qualquer informação específica, mas simplesmente conversar, prosear, falar sobre coisas do sertão. Quando disse ao velho sobre o desapontamento em quase não conseguir falar com as pessoas, este mostrou que era assim mesmo, que não se preocupasse com isso não porque o sertanejo é desconfiado por natureza, gosta de ficar na treita, atrás da moita, mas depois, quando começasse a abrir a boca era para não acabar mais.
Só tinha uma coisa, enfatizou o velho. E disse que para ouvir muita gente conversar, principalmente os que moravam nas roças e nos lugarejos mais afastados, era preciso ficar mais do que o atento para o linguajar, para as expressões próprias utilizadas pelos sertanejos. Somente com muita atenção poderia entender o que estavam ou pretendiam expressar.
Mas por outro lado, disse ainda o velho, tem uma juventude que apresenta as mesmas dificuldades de expressão, ou melhor, para saber realmente o que estão dizendo, pois falam uma língua que não é somente esquisita, mas que parece servir somente para eles se comunicarem entre si. Até aqui no sertão aparece essas coisas, essa babel que tira da boca do jovem caboclo a doçura, por exemplo, de dizer bom dia ou dar boa tarde.


continua...



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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