SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 6 de maio de 2010

SER SERTÃO: DA ARTE DE CONVERSAR – III

SER SERTÃO: DA ARTE DE CONVERSAR – III

Rangel Alves da Costa*


Querendo agradar ao velho e no intuito de ativar mais as suas energias, o turista ofereceu-lhe um desses energéticos em lata que é só abrir e tomar. Assim que soube o que realmente era, o velho disse que preferia tomar uma cuia de água salobra do que experimentar um gole daquilo. Primeiro porque não conhecia o veneno que tinha e segundo porque não era muito afeito a esses modismos consumistas. Até que o rapaz queria saber o que era água salobra, mas deixou pra lá, de modo que não interrompesse ainda mais a continuidade daquela interessante narrativa. E o velho continuou, após acender o cachimbo e dar umas boas baforadas:
A malandragem da gíria, essa gentinha suja e cheia de tatuagem que já chegou por aqui, não tem nenhum pudor, nenhum sentimento que possa se chamar de digno, e por isso mesmo nada pode ferir sua decência. O que seria decência para eles? Verdade é que a maioria não sabe nem o que é decência, honradez, dignidade.
Os que fazem parte dessa turma não estão se importando nem um pouco se os outros que não fazem parte da mesma laia falem com eles ou não. E quando querem falar com as pessoas fora do seu círculo parece que fazem mesmo de propósito, pois utilizam uma linguagem que nem todos dentre eles mesmos conseguem decifrar. Isso nada mais é do que tentar fugir da realidade da vida que os amedronta, e certamente amedronta muito.
Já o sertanejo decente, aquele matuto limitado de um linguajar mais eloqüente, ao contrário da turma da gíria, tem a exata noção do alcance do seu falar, pois abe que determinados termos que usa no dia-a-dia, no conversar e no prosear, são característicos do sertão e que, por consequencia, só podem ser entendidos por outros sertanejos ou gente acostumada em lidar com as pessoas do lugar. E é por isso mesmo que quando tem de conversar com uma autoridade ou outra pessoa da cidade grande fica um tanto envergonhado, desconfiado e relutante em levar adiante um diálogo. Sabe o que quer, entende o que dizem, mas tem receio de não ser compreendido, de tornar-se motivo para risadas e chacotas.
Existem certas situações em que as coisas realmente se complicam. Logicamente, num diálogo as pessoas podem usar a linguagem que quiserem, mais rica ou menos rica, sendo que o que vai importar mesmo é o entendimento. Ocorre que num bate-papo entre dois sertanejos, dois cabras que nasceram e se criaram nas roças distantes, se o camarada que estiver por fora observando não for realmente um entendido do falar matuto, duvida-se se ele souber decifrar ao menos a metade do assunto.
E nem adiante viver com um dicionário debaixo do braço, pois nem o estudioso das palavras, ou o lingüista ou lexicógrafo, ou qualquer coisa que seja, soube relacionar nos livros e com precisão aquilo aprendido, cultivado e repetido nas lides rotineiras da aridez da terra.
E o velho começou a dar exemplos desse típico falar sertanejo.
- Cumpade, ansim cuma discrebou a moiança, certim qui isquipou a fogança.
- É cumpade. Tarachadim e isnuviado, num tem culé nem pá pança nem pá desberrar.
- E o pior cumpade, estambo de caturizim murriado é o pió. Bicho inda lameia, mas estambo de caturizim é rim de lamear.
- Diga não cumpade. O tiquim de enganamento iscanchado num dá nem pá guentá dois cliarião, muito menos um arrumamento de isconjurança.
- Pois é, nem cestim nem rumança. O pior é discumbucar na trancação sem ter filipa que agoele.
- Só memo Deus cumpade, na sua quelemença. Sortim nas atravia sem distombo, só memo Deus pá disfartar.
- Deus há de invortar tudim. Só ele sabe como a isturricação ismolenga e desinquarteja o quartim do meu chochim.
- Inté cumpade, e qui Deus invorte tudim.
- Inté cumpade, é só ele memo pá amedonhar a cabança.
Para o que desconhece o falar sertanejo, certamente quase nada compreenderia sobre o que foi conversado. O desconhecimento de uns pode tornar obscuro, intricado, custoso de perceber o que foi tratado por outras pessoas. Contudo, nada mais claro para o sertanejo, mais compreensível e correto o linguajar que aprenderam a utilizar nos seus relacionamentos. Além disso, não deixa de ser o mesmo diálogo que outros, de forma diferente, podem ter em outro lugar.
De qualquer modo, o ponto de discórdia que pode haver é o da cidade grande achar que é mais importante porque fala mais bonito. Até pode ser, mas o sertanejo entende o falar da roça e da capital, enquanto que o da própria capital, mesmo vivendo numa torre de babel, só entende aquilo que não quer ouvir.


continua...



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: