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segunda-feira, 24 de maio de 2010

SER SERTÃO: DA ARTE DA REVOLTA – II

SER SERTÃO: DA ARTE DA REVOLTA – II

Rangel Alves da Costa*



O velho havia pedido silêncio e atenção de todos, mas ele mesmo de vez em quando interrompia seu relato para cumprimentar os amigos que chegavam, iam ficando por ali, matutando, até se inteirarem do que estava se passando e sendo explicado. E o velho continuava seu proseado e dizia:
Se por um lado a pecuária foi fator de suma importância para o povoamento da região sertaneja, por outro lado fez surgir o latifúndio, que constituiu-se no primeiro elemento ensejador da exploração e da desigualdade social no sertão. O latifúndio, caracterizado como uma grande propriedade, geralmente improdutiva na sua maior extensão, e pertencente a um só dono, também conhecido como latifundiário, coronel ou coisa parecida, tornou-se, e continua como tal, responsável por uma série de problemas que afetam direta e profundamente a vida no campo e nas cidades.
Dizem que esses movimentos rurais que surgiram vão combater tudo isso, mas duvido da seriedade dos seus comandantes e de muitos que fingem não ter terras para trabalhar. Estes, muitas vezes, querem tomar tudo à força, desrespeitando o direito de propriedade, o próprio Estado e a justiça. É lamentável, mas isso vem ocorrendo. Só quando verificarem que esses movimentos não passam de enganação, de meio pra pegar dinheiro e alimentação fácil do governo, é quando poderão dar um basta nessa festa vermelha. Mas isso é muito difícil de acontecer, principalmente quando os tais vermelhos têm cadeira cativa no poder.
Mas continuando: As grandes extensões de terras nas mãos de uma minoria dominante não significou, ao menos para a maior parte desta, prova de enriquecimento próprio e muito menos para as localidades onde se estendiam os latifúndios, pois as propriedades, sendo improdutivas ou inaproveitadas, muitas vezes serviam somente para conferir ao possuidor um determinado status ou privilégios junto àqueles que realmente tornaram-se senhores do sertão por muito tempo, que foram os cantados e decantados coronéis.
No entanto, quando se sabe que a conquista ou ampliação das propriedades também foi feito através de processos que envolveram mortes e expulsões dos pequenos proprietários, numa esteira de atrocidades que assolou o sertão, torna-se mais fácil compreender o significado político do latifúndio. Este era a demonstração de poder que, dependendo da força de arregimentação de iguais e da fama de destemor ou crueldade espalhada, passava a significar dominação.
A dominação de pessoas como se fossem bichos; a retirada à força de trabalhadores de suas terras, jogando-os no êxodo da marginalidade; o apagar de quaisquer perspectivas justas de vida e de realização, bem como a desagregação de uma sociedade ainda em formação, tudo isto, perante a ação nefasta do coronel e do latifundiário, tornou o sertão dividido em duas classes que se completam e se justificam: pobres e revoltados.
O que configura a pobreza é a insuficiência de bens provenientes da natureza e do trabalho para satisfazer as necessidades de sobrevivência. No sertão, surgiu da antítese da ganância e dos privilégios de que desfrutavam os ricos, passando depois a ser vista como uma consequencia da má administração do Estado, que continua privilegiando uma classe política que não tem nenhum compromisso com o que realmente afeta negativamente a vida do sertanejo.
Pela força e coragem, pobreza nunca esteve nos planos do dito caipira. Contudo, o próprio sistema sempre colocou os homens do sertão em duas classes fundamentais com interesses opostos. De um lado estão os trabalhadores que só têm a força de trabalho para vender em troca de uma esmola chamada salário. Do outro lado os ricos, os latifundiários, os apadrinhados do sistema que exploram, submetem, usam e abusam dos trabalhadores. Antes contratavam, pagavam qualquer dinheiro ao jagunço para matar, como relação de trabalho. Com o passar do tempo eles mesmo matam com o salário que pagam.
A pobreza se estabeleceu na sua maior força e crueldade e jamais pôde romper com a dependência que lhe deu origem. A marginalização espalhou-se pelos campos e pelas cidades, nos lugares mais distantes e até no quintal dos ricos. Foram surgindo contingentes de vagabundos, entregues à desfavorável sorte a que estavam submetidos. Desse modo, em linha de crescimento vertiginoso, a miserabilidade aumentava, condenando sem dó nem piedade a maioria da população sertaneja a uma existência desprezível e humilhante, configurando-se num verdadeiro sobejo social. Falar-se em sobrevivência, somente por milagre, pela fé, que foi o único alimento que jamais se fez ausente no corpo sempre carente desse povo.


continua...



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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