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quarta-feira, 19 de maio de 2010

SER SERTÃO: DA ARTE DE MENTIR – I

SER SERTÃO: DA ARTE DE MENTIR – I

Rangel Alves da Costa*


O velho sempre achou que essa coisa de mentir não é coisa pra sertanejo que se respeite. Como a mentira é coisa que se alastra mesmo entre as pessoas tidas como as mais sérias e respeitadas, dignas e cheias de epítetos, muitas vezes fica até difícil não conviver em meio ao dise-me-disse, à alegação de que a comadre disse isso ou aquilo, às invenções sem pé nem cabeça, às aleivosias maldosas, os fuxicos, as calúnias e tudo mais que complete essa milenar arte de faltar com a verdade. A mentira destrói em segundos aquilo que a verdade durará anos para reconstruir, já sentenciava o velho.
Descaramento puro de uma gentinha que não tem o que fazer, seja como for que queiram qualificar, a mentira no sertão muitas vezes é meio de vida, traz frutos e rendimentos para muitos sertanejos e sertanejas que se dizem arretados. Existem aqueles que podem jurar de joelhos que estão dizendo a verdade que mesmo assim ninguém acredita. Dizem que Maria da Lenha era tão mentirosa que ninguém acreditou quando ela veio correndo esbaforida dizer que Virgulino Lampião estava chegando com seus cabras. Depois foi um deus-nos-acuda! O velho não gostava de mentiras, contudo não estava imune a ouvir de vez em quando cada uma que se sentia envergonhado.
Certa feita, nem dez minutos havia que estava sentado num banco da praça, chegou um daqueles desconfiados – mentiroso só anda desconfiado! – e nem bem sentou ao lado e já foi logo perguntando se o velho já tinha ouvido dizer: "Já ouviu dizer?". "Dizer o que criatura? E nem me venha com mentira porque farejo essa porcaria de longe", disse o velho. Espantado com aquela reação, cortado no momento em que ia soltar a última bomba, espalhar a mais recente manchete inventada, o indivíduo não viu outra saída senão encontrar uma solução rápida para o caso: "É que ouvi dizer que o tal do Elvis Presley não morreu". E o velho começou a gargalhar enquanto o outro colocava o rabinho entre as pernas e saía ainda mais desconfiado.
Todo mundo ali sabia das convicções do velho e o quanto ele odiava conversas mentirosas. Segundo ele, toda mentira traz consigo uma dose de verdade, ao menos para o que mente. No fundo do fundo é imperceptível, não há uma consciência formada sobre os seus reais fundamentos, mas a verdade é que a mentira tem um objetivo mais claro do que a verdade. Tanto é assim que ela deve ser vista como a expressão ou manifestação contrária ao que se sabe, acredita ou pensa ser verdade. Ou ainda como a expressão conscientemente contaria à verdade, a qual, geralmente, tem como consequencia o engano do próximo. Assim, ela possui uma precisa finalidade, mesmo que seja para ver o circo pegar fogo.
Pelo que se sabe, e isto é a mais pura verdade, político é o único ser humano que não mente. Mentira daquele que diga o contrário, pois ninguém de sã consciência pode afirmar que repassou para outro, e este para o próximo, alguma coisa dita por um político. Se ninguém acredita em conversa de político, também não pode dizer que este faltou com a verdade, que mentiu. Por isso mesmo é que cada promessa feita, cada problema que vai ser resolvido, cada ajuda que vai ser fornecida, tudo isso, mesmo que a cada dia fique para ser resolvido somente amanhã, deve ser reconhecido como palavra de honra, como juramento incontestável, pois mentiroso e enganador é aquele que pede a um e vota em outro, que é o próprio eleitor.
Prefeito nem se fala. Todas as suas ações são envoltas de extrema seriedade. Tanto é assim que ninguém pode desmenti-lo, afirmar que não diz a verdade, pois um grupelho de servos de tostões, também conhecidos como bajuladores, contestam no ato, partem para briga. Na contenda, o prefeito é logo endeusado, torna-se imediatamente isento de qualquer acusação, e o acusador, seja mentira ou não, acaba sendo chamado de viado safado, filho de uma puta e sem vergonha.. Por sua vez, como não conhecem nem a metade do que acontece por debaixo dos panos, por via das dúvidas os aduladores preferem acreditar mais nas esmolas que ganham do que desconfiar daquele prefeito que mais parece um santo.
As mentiras mais deslavadas são abafadas e as verdades arranjadas vêm a público como por decreto. Nas construções, placas enormes indicam que o custo de determinada obra é de valor tal, um absurdo para uma coisa de nada. . Os mais experientes, principalmente os mestres-de-obras, logo afirmam que o custo previsto está muito acima do que pode ser gasto ali, que com a metade daquele dinheiro dava pra fazer tudinho e com material de primeira.
Entretanto, já vem outro e diz que não vai precisar nem de um terço pra tudo ficar nos trinques. Ocorre que o dinheiro já foi garantido, está na conta do prefeito, e passa um mês, dois e mais, e nada de construção. De repente, numa noite silenciosa, a placa some e no lugar não fica nada que indique que para ali estava projetada uma obra.
Os boatos aparecem, a oposição mete o pau e quer porque quer saber onde foi parar o dinheiro. A assessoria da prefeitura, através da central de puxa-saquismos, não justifica nada; o prefeito não tem nem aí nem vem chegando. No final de tudo, o único que terá de prestar contas, e na delegacia, será algum bêbado que na sua coragem etílica diga que o prefeito é ladrão.


continua...




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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