*Rangel Alves da Costa
Depois das sombras da noite, depois dos sinos
do amém e das preces de proteção, quando a escuridão começa a se espalhar pelos
quadrantes e tudo se transforma em negação de toda luz, e sequer a lua dá conta
de a tudo dar feição, então começam os mistérios que tanto atormentam os
homens. Surgem então os bichos da noite, que não são apenas seres possíveis ou
imaginários, mas também aqueles gestados nas profundezas inexplicáveis da alma.
Na infância, quando a criancinha era levada a
adormecer por causa do bicho-papão, que debaixo da cama se escondia com unhas
afiadas e dentes grandes, o temor impingido antecipava o que mais tarde se
transformaria em outros bichos-papões. Os papões saíram debaixo das camas e
foram espreitar na infinidade dos noturnos humanos. Depois disso, seja em
qualquer idade, sempre haverá um bicho-papão perante os frágeis seres humanos.
Dizem-se fortes demais, sem medo de nada, mas estremecendo sempre ante o
desconhecido que surge após a boca da noite.
E assim por que a noite é um mistério sem
fim. Nada mais instiga a alma humana que os segredos noturnos. Também assim com
os animais das matas e florestas, tomando-se por exemplo os hábitos noturnos de
muitos e principalmente do lobo sempre uivando a sua pujante dor. Não seria o
homem um ser que se revela noutro, e este mais sensível e temeroso, perante os
escuros, os desconhecidos e os mistérios da noite? A verdade é que a escuridão
sempre revela a nitidez da fragilidade humana. Tem-se o medo como prova maior.
Além desse misterioso manto que a tudo
recobre, tem-se que a noite é um zoológico sem fim, é uma povoação sem tamanho
de bichos e outros seres que vão muito além da imaginação. Zoológico terrível
pelas espécies que habitam as selvas da escuridão e da imaginação. Povoação
medonha pelo que fica à espreita nos invisíveis labirintos. Portas fechadas que
vão se abrindo nas revelações surgidas, nas histórias, nos causos e proseados,
bem como no medo comum do povo.
Que se tenha como verdade ou não, mas indiscutivelmente
que a noite é dos bichos. E quanto mais noite sem lua, no breu dos escondidos,
mas os bichos surgem ferozes, vorazes, ameaçadores, comilões. Que ninguém se
atreva a caminha sozinho pelas encruzilhadas, debaixo dos tufos de mato, em
meio aos despovoados escurecidos. Aí as mãos e as garras ocultas das
medonhices. Que ninguém se atreva passar perto dos cemitérios, das casinhas de
orações nas estradas, perante as cruzes fincadas em tristes motivos.
Seja de pelo ou de pata, seja com unhas apunhalas
ou dentes de sangue, seja em espectro ou desconhecido manto, seja arrastando
correntes ou vagando em lamentosos gemidos, seja em assombrações que aparecem e
somem, seja em medonhices invisíveis ou através de atitudes inexplicáveis, fato
é que o desconhecido sempre aparece e sempre envolve a noturna escuridão. Daí
ser a noite esse portal de onde vão aparecendo as estranhezas do mundo - ou do
outro mundo - tanto para instigar como para amedrontar ainda mais o ser humano.
Contudo, ainda assim sempre querendo ser conhecidas.
Todo mundo tem medo, mas também todo mundo
quer ter esse medo. Até inexplicável que tanto se deseje conhecer aquilo que
amedronta, mas a verdade é que o ser humano sempre quer conhecer histórias de
assombrações, coisas do outro mundo, de aparições do desconhecido, de fatos e
situações de arrepiar os cabelos. Depois tem medo de sair ou ficar sozinho, de
enfrentar qualquer situação ao menos parecida com o relatado, mas nunca foge da
vontade de conhecer as histórias. E histórias da noite que vão sendo contadas
dentro da noite, como cenário ideal para o deslumbramento do espantoso.
Quem já ouviu falar do lobisomem, da
mula-sem-cabeça, do fogo-corredor, do cancão de fogo, da visagem, do cavaleiro
da noite, da gemedeira, do homem que vira bicho, do carro que pisca e pisca e
nunca sai do lugar, do cavalo de olhos de fogo, da menina de branco, do menino
sorridente, da voz sem rosto, da vela acesa na beira da estrada e do gemido ao
lado dela, da mortalha que de repente aparece quando alguém está passando, do
bicho de duas cabeças e vinte patas, do morto-vivo, do fantasma da corrente,
das muitas e múltiplas assombrações que persistem alimentando os medos?
Não são, contudo, apenas estes espectros que
se enraizaram como os bichos da noite humana. Outros bichos existem que não são
menos terríveis que aqueles de repente surgidos para o arrepio ou o grito. Há
também o bicho feio da depressão, o bicho horrendo da dor, o bicho perigoso da
angústia, o bicho horripilante da culpa, o bicho terrível da solidão. Para não
falar da lágrima, do luto, da perda, da desvalia de tudo ante as fragilidades
humanas.
Bichos da noite, na alma noturna, nos
sentimentos, no íntimo dos seres, mas que também possuem garras, dentes
afiados, que arrastam grilhões, que atacam para devorar. Tão destrutíveis são
que muitos os temem mais que os lobisomens da noite sem lua.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário