*Rangel Alves da Costa
Lampião, o Virgulino Ferreira da Silva, foi
múltiplo, diversos, várias pessoas num único homem. Foi herói, foi bandido, foi
devoto, foi cruel, foi temido e também impiedoso. Foi liderado e foi líder, foi
sofrido e algoz do sofrimento, foi amigo e inimigo, foi perseguidor e
perseguidor, foi desumano e amoroso.
Foi Capitão, foi general, foi estrategista,
um mestre da guerra, um vitorioso e também um perdedor. Mas foi principalmente
um grande ator, senão o maior personagem criado para representar a si mesmo. Até
hoje se tem prova do quanto ele conduzia os holofotes ao seu brilhantismo.
Sua astúcia era tamanha, sua visão de mundo
era tão exacerbada, que ele mesmo protagonizou o cangaço como arte, beleza e
suntuosidade. O fotógrafo e cineasta Benjamim Abrahão serviu apenas para
registrar seus desejos de estrelismo. Era o próprio Lampião que teatralizava as
ações que até hoje são conhecidas em películas e fotografias.
Ao mesmo tempo ator, diretor e produtor,
Lampião ensaiava cada postura, cada gesto, cada encenação. Criou situações
inexistentes de combate, fez o bando gesticular segundo suas ordens, procurou a
pose ideal para cada cena ou cada fotografia. Mandou ensaiar bailes e depois
filmar a festança. Benjamim filmava ou fotografava aquilo já ensaiado, premeditado,
anteriormente concebido para o sucesso posterior.
Outro dia, alguém comentou num retrato onde
havia um coiteiro de costas e recebendo algo das mãos de Lampião, que aquela
situação retratada dizia sobre a necessidade de ocultação do rosto do mateiro sertanejo.
Coiteiro não podia ser conhecido para não ser perseguido e colocar todo o bando
em perigo. Tudo isso verdade, mas também verdade que o retrato não fora apenas
obra do acaso da lente de Benjamim Abrahão, e sim da ordem dada por Lampião. E
certamente para fotografar o coiteiro de costas e sua mão estendida naquela
direção. E aí o recado implícito: “Eis a serventia do coiteiro: ser mensageiro
das ordens do Capitão”.
Perante os retratos surgidos durante o após o
fim do cangaço, quase todos de impecável postura, há de se imaginar que muito
filme foi jogado fora, que muita fotografia foi ou rejeitada ou censurada por
Lampião, muito registro simplesmente se tornado em cinzas. Até mesmo as imagens
mais cotidianas do cangaço nasceram de prévio consentimento. Por isso mesmo que
situações mais íntimas não foram propaladas como reflexo daquela realidade
cangaceira. Muitos são os sorrisos, as poses de armas em punho, as
demonstrações de galhardia daqueles homens do sol.
Ora, Lampião sabia do poder da imagem e, por
isso mesmo, tudo fez para exteriorizar não só própria imagem como a do cangaço
como um todo. “Hoje vamos filmar uma dança”, dizia. E a cena saia perfeita.
“Amanhã vamos filmar como se o bando estivesse pronto ao combate ou guerreando
nas caatingas”, e assim era feito. “O mundo tem que conhecer nosso modo de
viver além da luta, e por isso mesmo quero um retrato de Maria bem sentada e eu
em pé lendo um jornal, com cachorros ao lado”, e depois disso a imagem ganhou
mundo e fama.
Por que Lampião fazia assim? Por diversas
razões, mas todas com declarada intencionalidade. Procura mostrar o cangaço e
ele próprio num contexto bem diferente da feição negativa estampada nos
jornais. Tenciona mostra os cangaceiros como pessoas comuns, alegres,
brincalhonas, desmitificando as versões de seres cruéis e sanguinários. Quando
aparece com armas em punho e em posição de combate, apenas para dizer que
estamos sempre em prontidão e que sabemos lutar.
Quando um grupo maior se reúne para
fotografias, as ideias são de mostrar a comunhão cangaceira e a suntuosidade
nas vestimentas e armamentos. Em tudo, o objetivo maior é o de impressionar, de
mostrar o cangaço como algo grandioso e que deve ser temido e respeitado. Por
consequência, afastar o senso de negatividade impingido àqueles homens das
caatingas e carrascais nordestinos.
Neste sentido, a estratégia de marketing
pessoal de Lampião foi de reconhecido brilhantismo. Cada fotografia de hoje
impressiona, cada película encontrada desperta mais atenção, cada situação
registrada faz nascer novas indagações. E Lampião queria isso mesmo, queria
assim mesmo. O Capitão do Sertão sabia que sua eternidade dependia da imagem
que deixasse. E o que deixou registrado é deveras impressionante.
Logicamente que o fotógrafo não entraria no meio
dos combates para registrar os feitos cangaceiros. Impossível fidelizar as
imagens da luta, do sangue derramado, da vitória ou da derrota, se a
intencionalidade maior era mostrar o cangaço humanizado até na valentia,
mostrar que viviam de um jeito muito diferente do imaginado pelos citadinos. E
tal preocupação é fruto exclusivo de Lampião. Sua larga visão impôs ao mundo
exterior a imagem que quis sobre o cangaço.
A maestria de um homem tão conhecedor de seu
tempo e destino que logo se preocupou em erguer seu próprio pedestal. E de lá
de cima ficar observando - ainda hoje - o mundo inteiro tentando desvendar seus
segredos e mistérios, sua vida e sua imortalidade.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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