*Rangel Alves da Costa
Difícil romantizar uma saga tão brutal e
sangrenta. Nada fácil tornar em ficção a veia aberta e o grito de dor, ainda
hoje espargindo sofrimento e ecoando o temor e a aflição. Ao escritor, apenas
imaginar como tudo poderia ser no mundo real. E por isso mesmo relato aqui uma
das possíveis feições para que o homem, escorraçado da terra, começasse a lutar
pelo direito a terra.
Eustáquio preferiu sair da cozinha pela porta
dos fundos, indo em direção ao quintal aberto. Não conseguiria passar pela sala
e avistar os meninos já famintos àquela hora do dia e sem nada na panela que
causasse a ilusão de comida.
Creuzina, sua esposa, havia puxado o pano da
cabeça e agora o utilizava como lenço, e já completamente molhado de lágrimas.
Nada podia fazer senão despejar o restinho de farinha de mandioca numa panela,
jogar um pouco de água por cima e depois mexer até aprontar uma papa d’água.
Tiziu comeu do que lhe foi colocado no prato.
Assim também com Pedro e Zefinha, a mais nova da família. Já Eustáquio, o pai,
e Creuzina, a mãe, beberam do fel salivento da dor, da agonia e do sofrimento.
Continuaram famintos, porém satisfeitos. Os filhos haviam tido a ilusão do
alimento. E depois, e mais tarde, quando a fome dos filhos novamente despertasse?
Adiante do barraco o mundo da desolação. A
estiagem havia deixado a terra em pó. Não havia verdor nem seiva de vida numa
só planta. A ossada do bicho parecia uma assombração esbranquiçada. Mandacarus
ressequidos, facheiros murchos, jurubebas mortas pelos beirais pedregosos das
estradas. Mas o pior estava por acontecer.
Quando o portentoso alazão riscou defronte a
morada, então Eustáquio logo imaginou o chão se abrindo a seus pés. A notícia
já era esperada e seria o fim do mundo. E ela havia chegado. Já acreditava nisso,
porém não acreditava que tão cedo pudesse acontecer. O recado foi tão breve
quanto arrogante: “O patrão avisou que junte as coisas e abandone a casa”.
Já na manhã seguinte e mais parecia um quadro
de Portinari. A pequena família em retirada e sem ter aonde ir. Não eram
retirantes das secas, e sim retirantes do teto e da guarida de sobrevivência.
Retirantes do pedaço de chão aonde se mantinham feito bicho entocados sem ter
outra saída. Retirantes da esteira ao chão, do estrado da cama, do pote e do
candeeiro.
Mas a família foi seguindo adiante levando
toda a riqueza em saco e cuia. Molambos, restos, pedaços. Já ao longe, antes de
tomar uma curva para o deus dará, Eustáquio parou um instante, olhou para trás
e estremeceu de ódio. Avermelhou ainda mais a pele já tostada de sol, afogueou
por dentro feito vulcão irrompendo todas as fúrias da vida. Quanta indignação,
quanto rancor, quanto ódio!
E um ódio tão animalesco que só os feridos no
espírito, corpo e alma podem sentir. Aquela paisagem sem fim, aquele meio mundo
de terra e chão, aquela vastidão sem limites, e tudo de um só dono, tudo de
quem sequer sabia a quantidade de terra que possuía nem a serventia de toda
aquela riqueza. E ele, caminhante pelo mundo dos outros, não tendo sequer um
palmo de chão.
Quis voltar. Fez menção de retornar e ir
diretamente até a porta daquele senhor dono do mundo, daquela víbora recoberta
de gente, daquele imprestável que se abancava na cadeira da varanda, mirando
sem ter o que fazer com as suas léguas e mais léguas de terra, mas sem ceder a
ninguém um só quadrado de chão. E sem deixar que o pobre fizesse vingar sobre a
terra um pé de milho e de feijão, uma abóbora, uma melancia.
Quis voltar. Fez menção de retornar, mas de
repente novamente voltou-se adiante e avistou sua pequena família a lhe
esperar. Também sabia que não voltaria com vida acaso fosse pedir satisfação ao
ex-patrão. Ele mesmo sabia das cruzes espalhadas por aqueles carrascais, das
tocaias feitas e das emboscadas mortais. Um mundo de urubus, de carcarás e
gaviões, de vidas definhadas ao sol pela sangria das injustiças.
A família virou a curva da estrada e seguiu
adiante. Talvez Tiziu estivesse com sede. Talvez Pedro estivesse com sede.
Talvez Zefinha estivesse doente. Mas tinham que seguir adiante. E para trás os
imensos descampados, as catingueiras e as umburanas num canto e noutro. Pouco
bicho para tanta terra e quase nenhum plantio que alimentasse a vida. Um mundo
do tamanho da ganância, da injustiça e da soberba.
Um mundo grande demais para quem não merecia.
E nenhum pedaço de chão àqueles que seguiam em frente na incerteza do instante
seguinte e do amanhã. Porém, na mente já menos raivosa de Eustáquio um
pensamento que mais tarde se tornaria ação: “Nem que sangre de morte, nem que
seja ferido pelo açoite da bala, mas ainda lutarei com toda força que tiver
para transformar esse chão num chão de todos. Para repartir essa terra com quem
dela precisa para trabalhar e sobreviver”.
E foram seguindo adiante. E pela certeza da
luta. A luta pela terra. Foi assim que muito da saga da reforma agrária se
iniciou. E muito vingou e muito frutificou.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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