*Rangel Alves da Costa
Carranca é cara feia. É bicho feio da peia.
Na embarcação vem na proa como bandeira que hasteia, mas sua intenção
verdadeira é espantar o perigo que alardeia.
Protegendo a embarcação vem a carranca
assombrosa, com a cara grande feiosa, com assombração não quer prosa, só quer
que o barco navegue livre da água ruidosa.
Os dentes grandes da carranca, o nariz imenso
que atravanca, a língua avermelhada é do tamanho de tamanca, e logo faz
espantar o assombro n’água e da barranca.
A história da carranca é tão velha quanto o
rio. Num tempo de água muita, navegar com desafio, vencendo as profundezas e o
de causar arrepio, mistérios e assombrações, em tudo o calafrio.
As águas possuem beleza, mas também muita
afoiteza. Imagina a mansidão, mas logo vem a correnteza. E navegar desprotegido
é desafiar os desconhecidos da natureza, é pensar fazer o certo quando tudo é
incerteza.
Nos áureos do São Francisco, grandes
embarcações navegavam, nas águas se enfileiravam com destinos ribeirinhos e até
no rio pernoitavam. Então surgiam os mistérios que nas águas espanavam.
Seres desconhecidos surgidos das profundezas,
coisas estranhas demais com fúria e com brabezas, fazendo o navegante temer naquelas
águas de incertezas. E foram buscar proteção numa cara de rudeza, na carranca
mais feiosa e seu jeito de malvadeza.
Dum tronco grosso de madeira, o artesão foi
moldando, com sua arte cortando e a carranca criando. Um misto de gente e
bicho, com os olhos esbugalhando, o nariz se achatando, a língua se avolumando
e os dentes ponteando.
Quem avista uma carranca logo começa a temer,
pois a cara enfurecida faz a pessoa tremer, por medo que ela avance e queira a
pessoa comer. Foi com essa intenção, para a embarcação proteger, que a carranca
vai na frente espantando o que na frente aparecer.
Tendo à frente a carrancuda com sua cara
horrenda, não há ser que não se ofenda e que não fuja da senda. Os maus
espíritos do rio surgidos de cada fenda, logo somem ao avistar a cara de pouca
prenda, com seus dentes afiados e sua língua tremenda.
Não há navegante que não saiba dos perigos de
um rio. Basta entrar nas águas e é lançado o desafio, e quanto mais distancia
mais perde a chama o pavio, do nada o inesperado, no corpo o arrepio. Mas com a
carranca na proa o percurso é macio, pois a cara feia espanta tudo e das águas
faz senhorio.
A carranca é como escudo contra o
desconhecido que vem, das profundezas e além e das beiradas também, afastando
todo mal que o mistério detém, fazendo sumir das águas o mal que faz vai-e-vem.
A carranca é como arma para vencer o inimigo,
para afastar o perigo e para livrar a embarcação de um possível castigo. Basta
que sua imagem, com cara de pouco amigo, surja na curva do rio que o caudal se
faz amigo.
As carrancas do Velho Chico não existem mais
como outrora, com o tempo foram embora, desfeitas de hora em hora. Uma ali
outra acolá, como se o rio em nada mais apavora, com sua magreza de água que
faz sofrer e que chora.
Quando avistar uma carranca, pois não tenha
medo não. Na cara feia a proteção, do Velho Chico o seu pendão, uma arte na
história e um fazer de tradição, num tempo em que o homem navegava em profusão.
Imagino aquelas águas e a carranca chegando.
Barcos grandes e pequenos pelo Velho Chico passando. Ribeirinho no seu mundo e
o mundo inteiro remando. Saudade que vem chorando, lágrima que vai secando.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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