SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 22 de outubro de 2010

"BENÇA VÓ..." (Crônica)

"BENÇA VÓ..."

Rangel Alves da Costa*


Mesmo com o progresso, ainda há muita diferença do sertão para a cidade grande. Pequenas coisas existem e persistem que faz a grande diferença entre o mundo matuto e o que se diz sabido demais.
É preciso que o cabra conheça o de lá e o de cá pra dizer que conhece a vida. Em tudo e em tudo que há, se encontra ainda muita diferença nos hábitos, costumes, crenças, modos de viver e de ser. Tive mais sorte do que muitos, pois nasci lá e vivo cá e lá, e é por isso mesmo que posso dizer do que sei sem inventar um tiquinho assim.
Bença vó! Deus abençoe meu fio! E começava o diálogo e ela começava a perguntar: Meu fio, num tô enxergano direito, mai o que é aquilo diferente que vejo ali mai na frente? E eu respondia: É a vida vó, é a vida que tá toda diferente. Hoje tem duas vidas, que é a vida da gente e a vida dos outros. Aqui dentro ainda tem a vida da gente, mas no mundo lá fora tá tudo diferente vó, é como se fosse outra vida!
Me conte isso direito meu fio, vá, me conte... E lá ia eu contar o que ela sabia demais.
Vó, quando eu digo que hoje em dia tudo tem duas caras, duas vidas, dois jeitos de ser, dois tudo, é porque a gente sabe que tem o sertão, mas também tem aquilo que o sertão deixou de ser. Vou tentar explicar, vó...
A senhora mais do que ninguém lembra de como o sertanejo gosta de receber visita, de convidar pessoas importantes para almoçar e oferecer festa e regabofe pra esse povo todo que se acha metido a besta.
Pois bem, vó, quantas vezes a dona da casa tirava da prateleira aqueles pratos bonitos, antigos, de louça pura, colheres e garfos do mais puro metal, porta guardanapos e até guardanapos feitos de pano branquinho, todos enfeitados com rendas e inscrições parecendo desenhos?
Todas as vezes que chegava visita importante em casa. Mas a senhora já viu a dona da casa sentar com o povo para comer com gosto e se deliciar com os quitutes abastados, que iam desde a galinha ao molho pardo, o porco assado, as diversas formas de servir os cabritos, os bodes, a carne de gado, os peixes e as aves?
E não sentava, e nem senta, na mesa dos convidados porque não gosta, não se sente bem, não lhe chega apetite igual ao que está acostumada a ter. Ora, vó, todo mundo sabe que esse povo do sertão só gosta mesmo é de comer na sua cozinha, no prato simples e quase rachando, de barro ou de estanho.
Esse povo simples, que é igualzinho a gente, muitas vezes prefere comer fazendo bolos de feijão com a mão, molhando o bolo no caldo da pimenta e levado com a outra mão o naco de carne até a boca.
Água bem ali na quartinha, caneca de alumínio brilhando e a certeza da felicidade. Sem falar, vó, no doce de leite cheio de bolas que vai ser apreciado como sobremesa. Por isso mesmo é que Dona Miúda dizia que a coisa que mais humilha o rico é o doce de leite do pobre.
E tem muito mais coisas, vó. Tem, por exemplo, o jeito da gente olhar e entender a natureza; o valor que a gente dá a uma vela acesa, a uma fitinha do padre Cícero, a uma imagem de santo na parede, a um bom dia ou boa tarde, ao pé de mastruz que cresce no quintal, aos retratos antigos que estão espalhados pelas paredes. Aqui a gente respeita muito tudo isso, mas o de lá nem sabem o que significa uma manhã de chuva.
Mas o que mais me doi mesmo vó, é sentir que o sertão está se afastando da gente e indo pro lado deles. Basta olhar pra meninada e sentir o desprezo que dão às nossas coisas, às nossas raízes, e se entregam de corpo e alma ao desconhecido.
É assim mesmo, vó. Pode chorar que a gente ainda sabe também o que é lágrima...



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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