SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A CASA E A VIDA DO MONSTRO – 9 (Conto)

A CASA E A VIDA DO MONSTRO – 9

Rangel Alves da Costa*


Ao ouvir os berros de sua mãe, Mehiel correu para ver se realmente estava acontecendo o pior. Encontrou a velha se balançando de olhos fechados, com rosários pela mãe e a boca em gestos silenciosos de orações. Alarme falso, pensou.
Ainda de olhos fechados, Dona Mundinha falou, sentindo a presença do filho: "One tava, que já gritei a me cansá e vosmicê nada de aparecer. Se eu morresse de sede era por sua culpa, que deixa uma mãe entrevada sem uma gota de água pra beber. Se avexe e traga logo minha água, anda...".
Enquanto ela falava, Mehiel a observava e percebia que ela havia mudado de roupão, estando agora com um mais preto ainda. As chinelas também já eram outras, as que sempre usava no dia a dia. E então ele se perguntou por que ela tinha levantado dali e não se lembrou nem de beber água, já que estava com tanta sede. Morrendo de sede, como ela mesma dizia. Ainda assim voltou para buscar a caneca d'água.
Ao passar pelo quarto dela, num relance viu um papel dobrado bem em cima da cama, como que esquecido ali. Aproximou-se rapidamente, percebeu que era aquele escrito que tanto sua mãe escondia e então resolveu colocá-lo no bolso para ler depois. Depois foi buscar a água e voltou como se não tivesse encontrado nada.
Para quem estava morrendo de sede, dois goles de água parece ser muito pouco, mas foi somente isto que Dona Mundinha bebeu. Em seguida começou a falar:
"Se eu pudesse sair desse entrevamento, me alevantar e caminhar ao meno um pouquinho, eu merma que ia arrumá uma muié pra lhe fazer companhia, pra vosmicê casar. Num vejo a hora de dividir as reza e as oração com ela. Inté já fico pensano cuma ia fazer. Ia dividir o céu com ela, poi eu ficava com o santo até a letra "mê" e daí em diante ela tumava conta. Dava a ela as ladainha e os teuços e ficava com o resto pra mim. Agora, Deus e nas coisas de Deus só quem podia fazer era eu, pruque Deus num ia aceitá outa pessoa que num fosse abençoada que nem eu...".
Com a maior vontade de gargalhar, mesmo assim Mehiel procurou apenas dar outra direção à conversa e perguntou:
"Que pena que a senhora não pode sair dessa cadeira um só instante para ir caminhar um pouquinho lá fora, e tenha certeza que não sabe o que está perdendo. Lá fora tudo mudou, tá tudo mais bonito e com muito mais gente morando ao redor. Se a senhora pudesse ver ia se encantar com a vizinhança. Tem a Dona Getulina logo ali do lado esquerdo, a Dona Esmeralda mais adiante e Euflosina logo ali também...".
Como já esperava, foi interrompido apressadamente por sua mãe:
"Nenhuma vale nada, tudo fofoqueira. Getulina, aquela sarará, dizem que é viúva má afamada. Esmeralda, aquela zaroia, dizem que...". E foi a vez de Mehiel interromper:
"Espere aí mamãe, como é que a senhora conhece esse povo, já que a senhora não sai daí e nem vejo elas aqui? Como é que a senhora sabe que elas não valem nada e que uma é sarará e má afamada e a outra é zaroia? Como é que..."
"Os santo, meu fi, os santo me conta tudim. Criaro uma amizade tão grande comigo que me cochicham no ouvido tudo que acontece por aí, quem é assim e quem á assado, quem é bom e quem é ruim, que faz coisa certa e coisa errada. Tudim, eles me conta tudim meu fi...". Toda sem jeito, suando feito pano de cuscuzeiro e se remexendo toda na cadeira, Dona Mundinha não encontrou outra saída senão apelar para os santos. Os santos dela talvez fizessem esse milagre. Contudo, não esperava ouvir o que ouviu em seguida:
"Pois os santos já estão tão acostumados com essa casa, com a gente, já sentindo parte da família, que também vieram conversar comigo. E sabe o que eles disseram mamãe? Santo Onofre disse que a senhora não tem doença nenhuma; São Sebastião disse que a senhora vive na mentira e no fingimento; São Cordeiro disse que a senhora vive por aí fofocando pelos muros e quintais; São Leopoldo disse que hoje mesmo a senhora saiu por aí apressada enquanto eu estava fazendo compras na cidade; São João disse que a senhora esqueceu de trocar os chinelos de sair para fofocar; e Santo Expedito disse que a senhora quando morrer vai diretinho pro inferno...".
"Santo Deus...". E Dona Mundinha fez como que estivesse sufocada e logo em seguida desmaiou profusamente, mas só até ouvir as próximas palavras do filho:
"Agora vamos ver o que está escrito neste bilhete que encontrei ali em cima da cama...". Ao ouvir tais palavras, a velha abriu os olhos repentinamente, deu um pulo e levantou correndo pra cima de Mehiel.
"Não, pelo amor de Deus não! Me dê pra cá esse bilhete...".


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: