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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 4 de outubro de 2010

A CASA E A VIDA DO MONSTRO - 5 (Conto)

A CASA E A VIDA DO MONSTRO - 5

Rangel Alves da Costa*


Caminhando sem pressa nenhuma, vez que praticamente era levado pelas pernas sem andar, Mehiel não sabia nem sobre o que pensava nem se conseguia pensar bem sobre alguma coisa. Sua cabeça estava cheia de problemas, de dúvidas, de indagações. Estava tudo bem, mas bastou ir comprar as benditas velas para que tudo isso acontecesse, se dizia raivoso.
E se sua mãe só tinha mandado comprar as velas para fazer aquilo que o padre havia dito, ou seja, trocar de roupa e sair pelos quintais e muros para fofocar? E se ela realmente estava fingindo doença esse tempo todo, fingindo aquela beatitude e devoção e fingindo tudo que dizia ter e ser? E se ela saía todas as vezes que ele se ausentava de casa, o que ia conversar com os vizinhos, dizer as pessoas, lorotar o que com os outros? E se por trás daquela pessoa boa, frágil, demasiadamente cristã, existisse na verdade uma mulher maquiavélica? E se ele estivesse pecando ao pensar tantas bobagens em relação à própria mãe? E se, tendo perdido a noção das coisas e da realidade, ele tivesse se transformado num verdadeiro monstro? E se, e se...
Mehiel estava capaz de explodir com tantas coisas vindo à sua mente a um só tempo. Cansado demais sem ter motivo para tal, pois o que havia feito até o momento nem se comparava com meia hora ao lado do forno da olaria tostando potes, panelas, vasos e moringas de barro, resolveu sentar por um instante num vão de uma casa abandonada que havia mais adiante da saída da cidade.
Não demorou muito e os olhos pesaram mil quilos e desabaram feito pena de passarinho. Adormeceu que pendeu a cabeça de lado.
"E chegava ao entardecer e olhava triste para o universo com o sol se escondendo e começava a gelar, a tremer e a se agitar por medo e por outros motivos que não sabia quais. E o sol começava a se esconder e ele começava a ficar pálido, doente, ciscando a terra, nervoso, mais agitado e com as unhas querendo cravar em qualquer coisa que encontrasse. E a noite chegava de vez e suores começavam a tomar conta do seu corpo, a pele ardente querendo explodir, os olhos faiscando feito labareda e as mãos e pés que não respondiam mais nem ao passo nem ao tato. E a lua surgia toda inteira, viva, grande, imensa, parecendo que ia tomar a terra, cair sobre a terra, dar um abraço embrasador em tudo, rolar sobre as pessoas e transformá-las em pequenas e minúsculas estrelas. E a lua faminta avançava sobre sua cabeça e ao tentar engoli-lo se afastava medonha porque ouvia um imenso e terrível uivo de um lobo, de um lobisomem ou de um bicho disforme e com duas cabeças que se erguia na terra, corria pela escuridão da noite, passava sorrateiro pelos quintais e muros, corria pelas estradas e veredas, pulava sobre moitas e ladeava árvores e animas e depois ia para o cume mais alto do lugar, onde se erguia feito um vulto preto e terrível, todo peludo e de um pelo perfurante, com olhos que faiscavam e narinas que soltavam fogo e fumaça, e depois soltava gritos lancinantes de dor, num gemido solitário que cortava montanhas e montes, corria pelos descampados, descia ladeiras, chegava nas estradas e ruas, entrava pelas portas e janelas das casas e acordava as pessoas para assustá-las. Jovens, velhos, adultos e crianças, todos sonhando com anjos, acordavam com os gritos medonhos e davam pulos na cama dizendo: é ele, é o monstro, é o monstro...".
Tendo tal pesadelo enquanto adormecia, Mehiel suava e se agitava todo, como se uma febre das mais terríveis fosse lhe consumir. E o pesadelo continuava povoando e agitando sua mente:
"...E descia da negritude da montanha, sombreando pelo amarelado da lua e corria enlouquecido pelos barrancos pulando por cima de pedras, derrubando galhos e espantando os seres da noite e, com a boca salivando uma gosma pútrida e de onde sobressaíam dentes pontiagudos de mais de dez centímetros, seguiu em direção à frente de sua própria casa e num pulo derrubou a janela entreaberta. Com uivos terríveis e o pelo crepitando, procurou perto da cadeira de balanço, num sopapo derrubou o oratório e os santos e depois correu aos pulos para o quarto onde sua mãe dormia. E deu um salto sobre a cama com a boca aberta e os dentes afiados, cravando-os na ripa, vez que o lugar estava vazio e a velha não estava lá para ser destroçada e engolida. E deu outro pulo e saiu procurando pela casa, mas nada de encontrá-la, e depois saiu porta afora onde encontrou-a nua e toda contente e feliz, cantando e dançando ao luar, e com um mosquetão apontado para sua cabeça. Quando ia dando o bote para alcançá-la, ela apertou o gatilho... Buuuuummmmm!!!...".
Acordou quase pulando, assustado, com o corpo todo dolorido pelo pesadelo. Assim que passou a mão pelos olhos para melhor despertar, enxergou um vulto passando rapidamente perto de um muro adiante. Era sua mãe, só podia ser ela, e correu para se certificar.


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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