SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 5 de outubro de 2010

A CASA E A VIDA DO MONSTRO – 6 (Conto)

A CASA E A VIDA DO MONSTRO – 6

Rangel Alves da Costa*


Mehiel levantou apressado, correu mais apressado para o local onde havia avistado uma pessoa passando com a aparência de sua mãe, mas não encontrou nada, sinal de nada, se era gente tinha sumido de vez naquele instante.
Tomou novamente o caminho de casa e não demorou muito e já estava botando o pé na malhada. A porta fechada, a janela aberta, as coisas nos seus devidos lugares, nada de diferente parecia ter acontecido. Como de fato aparentemente nada aconteceu.
Ao entrar, a primeira coisa que olhou foi para o local onde sua mãe costumava ficar, na cadeira de balanço e perto da janela. Mas ela estava lá toda espalhada na cadeira com sua roupa preta e seu olhar penoso para os santos, para o oratório e para as chamas das velas. Tudo dentro da normalidade, pensou.
Aproximou-se um pouco mais para entregar a encomenda e perguntar como estava, se estava precisando de alguma coisa, e percebeu o rosto com uma cor diferente, mais avermelhado, com uma tez de quem havia feito algum esforço maior há instantes atrás.
Percebeu ainda que o rosto estava muito mais suado do que o normal, ela parecia um pouco nervosa e, como sempre acontecia, não estava com rosários enrolados pela mão nem tinha alguma bíblia aberta no colo. O olhar também estava diferente, brilhando mais do que o normal, mais agitado, como quem procurasse algo mais do que santos e velas.
"Tudo bem mamãe, está precisando de alguma coisa? Aqui está sua encomenda. O que andou fazendo que parece meio cansada e agitada, até suando está, diga mamãe", falou Mehiel chegando cada vez mais perto.
"Nada, nada, é apenas esse calor que tá demais. Encontrou a moça que falei? Preciso de uma nora, de uma moça que me ajude a falar com os santos, a implorar a Deus e a ficar rezando o dia todinho aqui ao meu lado. Estou tão velha e desconchambrada que até parece que os santos não querem me ouvir mais...". Falava sem olhar para o filho. E este respondeu:
"Ainda não encontrei não, mas certamente as suas orações farão que logo logo caia uma chuva de noras aqui, disso tenho certeza. Mas estive com o padre – Ao ouvir a palavra padre ela deu um pulo na cadeira e quase levanta – e ele disse que não demora muito e vem aqui fazer uma visita..."
"Não precisa não, precisa não. Esse Padre Antonio é fofoqueiro por demais, que meter o bedelho onde não é chamado. Ademais, o meu negócio é com quem é mais forte do que ele, que são aqueles diretamente do céu. E quando ele chegar aqui diga que eu saí...". Disse a velha, se arrependendo no mesmo instante pelas últimas palavras.
"Como posso dizer que a senhora saiu mamãe, se a senhora não pode sair pra lugar nenhum. Ou pode?".
Ao ouvir isso a velha quase vai pro beleléu no mesmo instante. O rosto soava igual a pano de cuscuzeiro, a pele parecia um tomate avermelhado e murcho, as mãos tremiam e ela se agitava toda. "Um chá, traga um chá de folha dormida no sereno que quero aliviar as dores", ordenou ao filho sem responder.
Enquanto preparava o chá ouvia sua mãe cantar um daqueles credos que já estava até enjoando de ouvir: "Creio em Deus Pai, Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra. E em Jesus Cristo, seu Filho Unigênito, nosso Senhor, o qual foi concebido pelo Espírito Santo, nasceu da virgem Maria, padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu ao mundo dos mortos, ressuscitou no terceiro dia, subiu ao céu e está sentado a direita de Deus Pai, Todo-Poderoso, de onde virá para julgar os vivos e os mortos. Creio no Espírito Santo, na santa Igreja cristã, a comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição do corpo e na vida eterna. Amém".
Colocou o chá na xícara e se encaminhou até onde estava sua mãe, bem a tempo de enxergar ela escondendo rapidamente alguma coisa embaixo do camisão preto. Dirigiu-se até lá e quando ia entregar o chá percebeu uma coisa que lhe deixou espantado: sua mãe estava calçada numa sandália totalmente diferente da que usava ali, colorida e parecendo novinha, dessas que as pessoas usam para passear.
"De sandálias novas, minha mãe?". E por que foi perguntar isso? A velha deu um pulo que derrubou a xícara e deixou o papel cair bem aos seus pés.
Não pegou o papel nesse momento porque sentiu que a velha havia desmaiado.


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: