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sábado, 9 de outubro de 2010

A CASA E A VIDA DO MONSTRO - 10 (Conto)

A CASA E A VIDA DO MONSTRO - 10

Rangel Alves da Costa*


Bastou sua mãe levantar da cadeira de balanço com aquela rapidez e determinação toda para Mehiel ter a comprovação de que suas palavras não haviam sido mentirosas, ditas no intuito de ferir os sentimentos de quem se achava a pessoa mais sofrida do mundo.
Quem quase não podia levantar dali para fazer nada, quem vivia reclamando dos infortúnios da vida dia e noite, quem dizia possuir o corpo cheio de dores e entrevamentos, quem vivia se lamentando por não poder caminhar por aí como as outras pessoas, quem vivia segurando nas mãos dos santos e invocando o nome de Deus em tudo, quem não tirava dos lábios as palavras da bíblia, preces e orações, e quase tudo para que a saúde e a normalidade voltassem à sua vida de quase morta, não poderia levantar com aquela agilidade toda e avançar correndo para tomar das mãos do filho aquele papel.
Quando já ia tentando tomar à força a carta das mãos do filho, Dona Mundinha recuou rapidamente porque ouviu alguém falando na porta de casa: "Dona Mundinha, Mehiel, é o padre Antonio que vai chegando!".
Assim que ouviu o nome do sacerdote, voltou num pulo para a cadeira, retomou sua aparência de doente quase terminal, colocou no semblante uns olhos de quem precisa de piedade e na boca leves gemidos como se já estivesse se despedindo dessa vida. Ainda assim seus olhos faiscavam e jogava um olhar de ódio em direção ao filho, que havia guardado a carta no bolso.
"Pode entrar Padre Antonio, pode entrar que a porta está só encostada", disse Mehiel sorrindo. Dito e feito, pois num segundo e o velho sacerdote já estava cumprimentando pessoalmente os dois: "Como vão nossos amigos. Saúde boa, muita paz, muita devoção a Deus no coração? Assim que cheguei aí em frente ouvi um barulho estranho e até fiquei preocupado, mas tudo bem por aqui?".
"É trovão da tempestade que vem chegano, pade Antonho, e o tempo tá todo nublado pru causa da tempestade que já vem vindo. Inté já ouço os pingo cair, galinha ciscano e gado berrano, e tudo com medo da tempestade que vem aí...". Foram palavras de Dona Mundinha, toda lastimosa, com a cabeça meio derreada para um lado, como se estivesse dizendo "coisa com coisa", num devaneio dos que não entendem as próprias palavras.
"Valha-me Deus, Dona Mundinha, como a senhora está acabadinha, variando, dizendo coisas que não está vendo, que não existem, pois o sol está brilhando como nunca lá fora. De qualquer modo, acho que cheguei bem a tempo de fazer a extrema unção dessa pobre mulher que já deve estar ao encontro da morte...". Disse o padre quando já ia procurando na sua pastinha uma cruz, óleos e outros instrumentos para fazer o último sacramento recebido em vida pela pessoa.
"Pelo amor de Deus, Padre Antonio, nem pense nisso, pois isto seria o maior pecado do mundo dar uma extrema unção a uma pessoa que não tem absolutamente nada, que não está gravemente doente e que tão cedo não passará dessa para melhor. Mamãe só estava com um pequeno mal-estar, coisa da idade, mas já está recuperada. Guarde a unção para outra pessoa, que minha mãe não precisa não. Olhe lá padre, veja como ela já está quase sorrindo...". Mehiel falou somente isto, porém com outras verdades presas na garganta, doidas para desengasgar de vez e dizer tudo ao sacerdote.
Com efeito, ao se aproximar mais da velha senhora, o sacerdote percebeu uma coisa que não queria acreditar, pois Dona Mundinha deixava transparecer um sorriso de escárnio e zombaria de todos que estavam ali, como se dissesse quanto idiotas e tolos são esses dois.
"Agora sim, Dona Mundinha, parece que já está bem melhor, recuperada do susto que nos passou. Agora podemos conversar um pouco. Me conte como tem passado, está tudo bem?", falou o sacerdote.
Fez sinal para que o Padre Antonio se aproximasse um pouco mais e falou ao seu ouvido bem baixinho, não tirando os olhos de Mehiel. Após esse estranho diálogo, o sacerdote se voltou para o rapaz e disse:
"Por que fizeste isto meu filho? É um pecado muito grave, até mortal, usar a força para retirar um objeto de sua mãe que está doente. Por que fez isso meu filho? Não deveria ter ameaçado e usado de brutalidade com sua mãe para pegar a carta que pertence a ela. Não deveria ter feito isso de jeito nenhum. Reparo o seu erro agora que relevarei esse seu grande deslize. Venha cá, me dê aqui em minhas mãos a carta que pertence a ela, venha...".


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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