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quarta-feira, 27 de outubro de 2010

REFLEXÕES SOBRE O ESPELHO (Crônica)

REFLEXÕES SOBRE O ESPELHO

Rangel Alves da Costa*


Havia manhã, mas não havia espelho nem quem se olhasse no espelho. Logicamente que ele ainda estava lá pendurado na parede, com sua moldura antiga e bonita, quieto e triste, parecendo passagem para o mundo de ilusão, querendo mostrar firmeza, porém sabendo que não havia mais razão para existir.
Ora, não há espelho que exista ou resista se não há ninguém para refletir, se não há mais ninguém que vá lhe perguntar como está o rosto, o olhar, o cabelo. O espelho nasceu para dialogar, para suportar o outro, para mentir, para fingir formosura onde não há nenhum sinal de boniteza. E se nada existe mais também não haverá mais razão para que o espelho continue existindo.
Ao amanhecer, sem ter quem corra para se enxergar, para contar as rugas, para se espantar com o próprio reflexo, para implorar aos céus que ainda haja um sinal de adolescência ou de mocidade, o valor que tem um espelho é o mesmo que uma fotografia totalmente desbotada, que uma tinta se desprendendo da parede, que uma casa de aranha que se forma num canto qualquer.
Espelho sem vida, sem espelhar ninguém é igual ao teto da Capela Sistina sem o monumental afresco de Michelangelo. Há quem diga que o garante a sobrevivência do espelho não é aquele que vai nele se olhar, mas a vida refletida que se fixa nele e vai vivendo até morrer se outra face não chegue para garantir a continuidade.
Sem os passos daqueles que vivem tomando elixir da eterna juventude não há espelho que encontre motivo para continuar vivendo, esbanjando egoísmo e vaidade, glamour e falsidade. Todo espelho vive achando que as pessoas dependem dele para terem um dia feliz, que tudo na vida depende de sua sinalize que alguém está com um rosto atraente ou não, que ele diga a todo custo se a patinha feia está um cisne encantador.
O pior é que usando de armas pouco honestas e confiáveis, o espelho realmente passa a ter o poder de vida e de morte sobre as pessoas. Contam que na França, no reinado de Luís XIV, uma depravada dama da corte exigiu que o seu traído esposo encomendasse milhares de espelhos e os estocasse nos porões. Todas as vezes que ela achava que determinado espelho não a refletia sempre bela e atraente, mandava destruí-lo na hora. O problema é que não tinha estoque que desse jeito.
Um dia foi adquirido mais um carregamento de espelhos e junto com ele foi um espelho diferente, já experiente de situações tais e pronto para enfrentar qualquer monstro que pretendesse se ver como bela princesa. E a dama foi quebrando um a um dos espelhos até que só restou o danado daquele espelho.
Não pode ser, linda e encantadora como sou, e estes malditos espelhos me deixando torta, envelhecida, cheia de rugas, com um olho maior que o outro, a boca murcha e a pele enrugada, dizia consigo mesma, enquanto mandava quebrar o espelho e colocar outro no lugar. E de repente ela se olhou e se achou a mais linda, a mais encantadora, a mais sexy e atraente das mulheres.
Eu sabia que um dia um espelho haveria de reconhecer-me como realmente sou, disse com exuberância e felicidade. E se olhou mais uma, duas, mil vezes, e a cada novo olhar era como se algo mais belo fosse surgindo na sua feição. Procurou onde haviam adquirido aquele sábio espelho e ordenou que outros iguaizinhos fossem adquiridos urgentemente e espalhados pelo castelo inteiro.
Dito e feito. Só que nenhum dos outros espelhos refletia a princesa tão bela como aquele espelho e então esta, depois de passar mais de três horas se olhando e se encantando, perguntou-lhe porque os outros não conseguiam mostrá-la como verdadeiramente era, como a mulher mais linda do reino.
E então o espelho, que sempre ficava calado e morrendo de rir, não suportou e falou: Exatamente porque reflito o que você não é. Enquanto você mente para si mesma, eu minto para mim e para você. Mas não sou bobo refletir sua feiúra com minha própria luz, pois cada vez que você se olha eu lhe reflito com a luz dos outros espelhos que você quebrou. Somente assim você sobrevive da mentira e eu mentindo porque estou lhe espelhando. Nada diferente da vida...



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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