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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 6 de outubro de 2010

LÁGRIMAS AMIGAS (Crônica)

LÁGRIMAS AMIGAS

Rangel Alves da Costa*


Ontem chorei. Não estava doente, nenhuma dor nem saudade me afligia, mas chorei. E chorei simplesmente porque choro todas as vezes que sinto vontade de chorar.
Qual é o sincero significado da lágrima, senão transbordar em líquido o que é derramado pela pessoa que pensa que é sólida? Daí que o choro é a expressão verdadeira da pessoa que respeita os próprios sentimentos e não nega a si mesma o direito de se reconhecer através da lágrima.
Reconhecer-se através da lágrima porque esta não existe sem o motivo. O choro não vem simplesmente porque choveu na nascente do espírito, porque as tempestades invadiram os sentimentos e a meteorologia do quarto fechado permitiu.
Não. Tudo acontece porque somos humanos, e como tal nos chega a tristeza, a solidão, o silêncio aflitivo, a angústia e até a alegria. As lembranças e as saudades geralmente são os processos mentais geradores disso tudo. Mas motivos outros existem que somos incapazes de dizer com palavras.
Da lágrima que falo não é aquela surgida na dor física ou com a perda física de alguém, pois esta lágrima nem deveria ser chorada externamente, vez que sua foz já jorra incessantemente por dentro. Do mesmo modo, da lágrima que falo não é aquela que surge por qualquer emoção, qualquer medo ou situação outra que dê vontade de chorar.
Tais lágrimas são diferentes. As primeiras não existem porque não escorrem, se derramam pelas veias como lava vulcânica no seu mais alto potencial. E as segundas porque surgem igual a chuva de inverno, sempre nova a todo instante e incessantemente, sem nenhum motivo maior para ser chorada.
Falo de outras lágrimas, cito outras fontes que inundam, digo da lágrima no olho seco, na boca sorridente, na voz pronunciada, no corpo que anda, na mente que pensa distante. Digo dessa lágrima que está sendo derramada e ninguém percebe visivelmente que está sendo chorada. Digo dessa lágrima que é lágrima silêncio, música e oração...
Digo dessa lágrima escondida nas valsas vienenses, nos danúbios que viajam azuis, nos prelúdios e nas sonatas; dessa lágrima que canta My Way, que ouve Enya, Jobim, Flávio Venturini, Elis Regina, Gonzaguinha, que diz "Não chore por mim morena, não chore que eu chego já, o amor por você morena faz a saudade me apressar...".
Digo dessa lágrima escondida nos amores míticos de Avalon, entristecida na paixão mortal do jovem Werther, fumaçando pelas mãos de Florbela Espanca, jorrando pelos Canteiros de Cecília e Fagner, nas palavras sinceras de Scarlett O'Hara, pois "Amanhã sempre será outro dia...".
Digo dessa lágrima impossível de se ver, pois escondida numa tragédia de Shakespeare; num poema de Poe, de Drummond, de Yeats; naquilo que tanto li, naquilo que tanto senti, naquilo que tanto sofri: Pássaros Feridos, O Apanhador no Campo de Centeio, Fernão Capelo Gaivota, O Morro dos Ventos Uivantes, O Pequeno Príncipe, O Fio da Navalha.
Digo dessa lágrima que é minha e que é verdadeira. Porque não preciso chorar, basta colocar uma coroa de espinhos e subir numa cruz para ver os que estão adiante e ter a certeza porque e pelos que devo chorar.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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